domingo, 1 de janeiro de 2023

Bento XVI escolheu uma morte digna, e essa foi a sua última mensagem de Fé.

 



Fora o braço direito de João Paulo II, mas o seu breve papado foi decisivo para mudar a Igreja (e a preparar para Francisco), ao mesmo tempo que a fazia parte de todos os debates da contemporaneidade. Artigo do publisher do Observador, José Manuel Fernandes:


No início desta semana soubemos que Bento XVI estava muito doente – foi até um anúncio inesperado, feito pelo próprio Papa Francisco. Dias depois foi noticiado que tinham querido levá-lo para o hospital, mas ele preferira ficar no pequeno mosteiro em que vivia, no coração do Vaticano. Ficou a aguardar o fim, e o fim chegou este sábado de manhã. Haverá melhor exemplo de uma “morte digna”?

Joseph Ratzinger desempenhou o seu papel até ao último suspiro, mesmo sendo apenas (apenas?) Papa emérito. E desempenhou o seu papel seguindo coerentemente algo que escreveu há mais de 60 anos, quando ainda era apenas um jovem teólogo envolvido no Concílio Vaticano II – a Igreja do futuro, para ele, passaria por a religião adquirir uma forma diferente “mais magra na forma e no conteúdo, mas talvez mais profunda”. E não só: devia abandonar o transitório para se focar no essencial, devia assumir que as pessoas querem uma Igreja que “não tema a ciência nem precisa de a temer”. De certa forma essa foi a batalha da sua vida, a que lhe ocupou alguns dos mais importantes discursos do seu pontificado, a conciliação entre a Fé e a Razão num mundo onde a Fé não pode estar ausente de qualquer domínio nem ter temas tabu – daí que a sua primeira encíclica, Deus caritas est, tenha abordado sem complexos o tema do amor erótico, daí que tenha mudado tudo, literalmente tudo, no Vaticano ao renunciar ao fim de apenas oito anos na cadeira de Pedro.

Não sendo crente, mas não ignorando o papel que a Igreja Católica tem e teve, segui com a maior atenção o seu papado e gostei, gostei mesmo, de ver nele confirmada a previsão que fiz no texto que escrevi no dia em que foi eleito: “Joseph Ratzinger era, provavelmente, o mais próximo colaborador de João Paulo II. O seu grande cúmplice. Mas quererá isso dizer que Bento XVI será apenas um mero continuador do Papa que o antecedeu? Dificilmente.”

Não foi de facto um mero continuador. Basta pensar na forma como João Paulo II arrastou estoicamente o seu mandato mesmo quando já estava muito doente e muito enfraquecido, e Bento XVI renunciou ainda bem lúcido, tão lúcido que sabia não ter condições nem energia para imprimir ao Vaticano as mudanças necessárias.

Já muita coisa tinha feito, a começar por uma mudança radical da forma como na Igreja se tratava o problema da pedofilia – foi ele que, era ainda apenas o líder da Congregação para a Doutrina da Fé, levou um algo renitente João Paulo II a assinar, em 2001, um decreto – Motu proprio Sacramentorum Sanctitatis Tutela – que obrigou a que todos os casos detectados lhe fossem comunicados enquanto “guardião da fé”, passando a adoptar uma linha de “tolerância zero”; foi ele que, mal foi eleito Papa, agiu disciplinarmente contra dois altos responsáveis que, há décadas, iludiam as sanções por terem “protectores” no Vaticano; foi ele que agendou entre as suas primeiras visitas idas a dois países onde os escândalos eram maiores, os Estados Unidos e a Austrália; e foi ainda ele que, na carta que escreveu aos cristãos irlandeses, um documento ainda hoje referenciado, não só não se limitou a pedir perdão, antes passou a tratar os abusos como “um crime”. Não terá percorrido todo o caminho, mas dificilmente o Papa Francisco o poderia ter percorrido sem a ruptura de Bento XVI relativamente aos hábitos do tempo de João Paulo II.

Foi preciso coragem? Certamente, mas o jovem Joseph Ratzinger já dera provas de coragem quando desertou do exército alemão, onde fora incorporado contra vontade aos 16 anos, como voltaria a dar sinais de uma imensa coragem ao quebrar a rotina secular da Igreja e ao renunciar ao Papado, talvez a mais revolucionária – não creio exagerar nas palavras – decisões da sua longa vida.

E a mim não me surpreendeu essa coragem nem essa capacidade promover a mudança por duas ordens de motivos. Primeiro, porque Bento XVI era uma grande teólogo, e como teólogo era alguém que dominava amplamente a doutrina e, por isso mesmo, alguém capaz de saber até onde podiam iam as mudanças sem recear passar fronteiras mais problemáticas. Isso mesmo me dissera, numa entrevista logo após a sua eleição, o então bispo auxiliar de Lisboa D. Manuel Clemente: “são geralmente os homens que estão muito dentro da tradição, que conhecem muito bem todos os elementos que estão em causa, os que se sentem seguros para avançar”. O que me leva ao segundo ponto: Joseph Ratzinger tinha sido visto como um “progressista” que o tempo tornara “conservador”, mas por regra são os conservadores que têm melhores condições para mudar a tradição evitando tanto o reaccionarismo como as tentações revolucionárias. Por outras palavras: mais depressa encontramos um reformista eficaz num conservador do que num revolucionário tonitruante.

Mesmo assim Bento XVI nunca teve aquilo a que habitualmente se chama “boa imprensa” – ao contrário, felizmente, de Francisco –, pelo que não foram poucas as vezes que tive de ir à fonte – o site do Vaticano – ler os seus textos pois eles tinham sido treslidos pelos jornalistas. Uma das vezes que isso que aconteceu foi quando Bento XVI se tornou numa das primeiras vítimas da hoje muito em voga “cultura de cancelamento” – ou seja, quando teve de desistir de dar uma conferência na Universidade de Roma, “La Sapienza” (A Sabedoria), por pressão de um grupo de professores.

O tema não podia ter deixado de ser a relação entre Fé e Razão e o texto de Bento XVI era de uma enorme abertura e universalidade, para além de ser imensamente erudito – não por acaso muitos o consideraram “um dos maiores intelectuais da Europa”, não por acaso manteve animadas controvérsias com grandes figuras do pensamento europeu, como Habermas.

Nessa conferência que os alunos dessa universidade não puderam ouvir ele defendeu que “o perigo do mundo ocidental é que o homem, obcecado pela grandeza do seu saber e do seu poder, esqueça o problema da verdade. E isto significa que a razão, no fim do dia, acabará por vergar-se às pressões dos interesses e do utilitarismo, perdendo a capacidade de reconhecer a verdade como critério único”.

Não encontro melhor forma de terminar este texto de homenagem a alguém que muito admirei — mesmo não tendo eu o dom da Fé — do que recordar esta frase que cada dia que passa torna mais verdadeira.

(Escrevi bastante sobre o Papa Bento XVI, pelo que quando renunciou reuni aqui esses vários textos, que incluem a participação numa conferência na Universidade Católica)
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