Portugal tem sido vítima de um comodismo ético, uma ética vazia de conteúdo. O moralismo, o autoconvencimento, o dogmatismo moral é incompatível com a capacidade de corrigir, emendar e rectificar. António Rocha Martins para o Observador:
Medo
do poder e medo da responsabilidade levam à demagogia e à constante
justificação do poder que se tem. Constituem o maior erro político.
Ocorrem quando a «vaidade», a «ânsia de poder», a «ambição rastejante»
substituem a «coragem», a «audácia», o «domínio de si», a «capacidade e
força para aplicar o bem que se toma das mãos do povo». O «ímpeto de
agir» e o «poder com responsabilidade» são preenchidos pelo mero «êxito»
pessoal. Por isso, tem razão Bismarck ao afirmar que «fazer política
com princípios é como entrar numa densa floresta transportando uma longa
vara entre os dentes» (ou, «atravessar o Sena a nado, com um sabre
entre os dentes»). «Princípios políticos», e não «princípios éticos ou
religiosos», entenda-se. Nenhum princípio político prescreve por si a
essência da política. Tal como a medicina, a política é uma «arte»
(«arte de governar»), não uma «ciência». Uma arte de equilíbrio e
acerto, em palpação contínua (como as antenas de alguns insectos).
Pertence, portanto, à esfera do relativo. Assim escreve Max Scheler, a
propósito da figura do «herói», ao qual faz equivaler o «estadista», o
político ético.
Uma
coisa é o político de princípios e da mera convicção, outra coisa é o
estadista. Enquanto aquele não vive sem um manual de instruções,
seguindo fixamente os «programas do partido», o estadista eleva-se acima
dos partidos, «cavalga» sobre todos eles, jamais desejando «montar»
algum. Ciente daquilo a que os gregos chamavam kairós, «adapta-se a cada
dia» e «a cada hora», mostrando estar à altura nas situações mais
dolorosas (guerras, revoluções, calamidades), situações “peculiares” e
“únicas”: «o homem oportuno para a hora oportuna». Ciente também de que o
passado é a memória das nossas próprias acções, o político estadista
eleva activamente o Estado a um nível de desenvolvimento sucessivamente
superior, sentindo-se, ante si mesmo, co-responsável pelo conjunto do
Estado e pelos seus cidadãos. Não despreza as massas, ao contrário dos
«aduladores», mas mantém perante elas o hábito da distância. Mostra-lhes
confiança, vivendo profundamente enraizado no povo e no seu espírito. E
defende vigorosamente o princípio do primado da política sobre a
economia bem como a independência da alta política perante os interesses
das grandes associações económicas. Enfim, o político estadista é um
«líder», ou seja, uma «figura-valor», um «modelo».
Scheler
replica uma célebre conferência proferida por Max Weber em 1919,
intitulada «A política como vocação [profissão]». Nela, Weber traça a
distinção entre «ética da convicção» e «ética da responsabilidade», o
pano de fundo da argumentação de Scheler. A ideia nuclear é a de que a
política, no seu «forte e lento verrumar em dura madeira», faz-se com a
cabeça, mas não apenas com a cabeça. Precisa de paixão e mesura,
convicção e responsabilidade. Estas duas éticas traduzem modalidades
políticas, a um tempo opostas, e a outro tempo complementares. Mas
nenhuma delas pode subsistir sem a outra. Corporizam dilemas éticos
inerentes a toda a carreira política.
A
ética da convicção é o plano estrito da consciência (refúgio
privilegiado e reivindicado por todos os políticos do nosso tempo). A
intenção é a única coisa que conta. As ideias políticas justificam-se
por si mesmas. Não há qualquer ligação entre a ideia que se tem para o
mundo e a recepção que o mesmo mundo pode oferecer a essa ideia. Quando
as consequências da aplicação das suas ideias programáticas são más, o
agente político não se considera responsável por elas. Pode mesmo
transferir essa responsabilidade para outros (o mundo, a estupidez dos
homens, a vontade de Deus, etc.). Por outras palavras, nunca somos
culpáveis, desde que a intenção formada pela própria ideia se presuma
correta. A ocorrência do mal explica-se sempre em função de fatores
externos ou hostis, nunca devido à nossa impreparação ou inaptidão («não
sou eu, é a maldade…»). Julgamo-nos absolutamente convictos, sem que
nos interroguemos sequer acerca de consequências previsíveis e, ainda
por cima, sacudindo para outrem ou forças impessoais a nossa própria
responsabilidade. Promovendo-se, portanto, uma auto-desresponsabilização
política.
Submersa
nestes enleios, oriundos de uma ética de absolutos (intransigência nos
princípios), a acção política mostra ausência de maturidade para estar à
altura das realidades da vida. A sociedade e a vida dos povos não são
um jogo onde se imponha demonstrar a razão que se presume ter, como num
debate teórico. Urge saber pensar politicamente. Sentir a
responsabilidade pelas consequências e agir de acordo com uma ética da
responsabilidade.
Vividas
pelas pessoas «adultas» e «maduras», as duas éticas são complementos,
não opostos. Vemos, por um lado, que nem o bem resulta apenas do bom,
nem o mal provém apenas do mau, e que, por outro lado, as consequências
produzidas pelos nossos actos e pelas nossas intenções não seguem
necessariamente um padrão linear, não podendo, pois, todas elas, ser
desejadas, intencionadas, antecipáveis.
As
reflexões dos dois pensadores continuam a ser, ainda hoje, plenamente
válidas. Partilhamos uma época de «desencanto» pelo presente e de
«angústia» pelo futuro. Ambos se insurgem contra o «prudencialismo» (uma
desfiguração do significado de prudência), a «petrificação mecânica» da
«racionalização» e o controlo do Estado. E ambos sabem bem do que
falam, presenciaram a violência da guerra e o nascimento do
totalitarismo.
Em
Portugal abundam os exemplos que patenteiam, ao nível do insuportável, a
desordem e precariedade do mundo político. É precioso que a questão da
ética esteja a ser introduzida nos debates sobre a natureza da política
corrente, mas é também imperioso passar do diagnóstico ao prognóstico.
Uma ética de absolutos, da mera convicção, sem o compromisso dos
«valores», transforma-se facilmente num relativismo dogmático e
intolerante – como estamos a ver. Ela até pode ser ocasionalmente válida
nos contactos pessoais, mas é completamente inapropriada ao exercício
do poder político. Não basta ter “bons princípios políticos”, se a eles
não corresponder a assunção da responsabilidade que a atestação
efectiva, com a realidade da vida, força e pressupõe. Não é por acaso
que as longas permanências no poder são raras. Portugal tem sido vítima
de uma espécie de comodismo ético, uma ética vazia de conteúdo. «Pessoas
que não sentem realmente o que assumem, mas se inflamam com sensações
românticas». O moralismo, o autoconvencimento, o dogmatismo moral é
incompatível com a capacidade de corrigir, emendar e rectificar, isto é,
com a maturidade da responsabilidade.
Postado há 41 minutes ago por Orlando Tambosi
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