Que saudades dos anos d’outrora, em que eu entrava no salão do meu barbeiro, um cearense baixinho, amigo do violão e da cachacinha de ocasião, e via o Notícias Populares dobrado em cima de uma mesinha. Via Crusoé, a crônica de Orlando Tosetto:
Houve
tempos mais risonhos na minha vida, em que tudo o que eu sabia de
política era o que ouvia de taxistas e barbeiros. Mais de barbeiros do
que de taxistas, haja vista a diferença nas tarifas. Fora do âmbito
desses, hum, serviços, a vida corria sem que ninguém soubesse bem quem
presidia a Câmara, quem mandava em tal ou qual tribunal, quem eram os
senadores do seu estado: mal e mal se sabia o nome do prefeito, e a
palavra “vereador” era quase mote de piada suja.
Mas
isso foi em tempos quase imemoriais: os anos 80/90. Hoje não é mais
assim. Que saudades dos anos d’outrora, em que eu entrava no salão do
meu barbeiro, um cearense baixinho, amigo do violão e da cachacinha de
ocasião, e via o Notícias Populares dobrado em cima de uma mesinha. Eu
me sentava na cadeira, vestia aquele avental que cheira eternamente a
água de colônia vagabunda, respondia às perguntas de praxe (“Bem curto
atrás? E em cima? Passa a máquina? Vai fazer a barba?”) e esperava o
primeiro comentário.
— Viu o Brizola?
— Não vi o Brizola. O que é que ele fez?
— Rapaz…
Sempre
que surgia esse “rapaz”, era bomba: o Brizola tinha aprontado. Ou o
Maluf. Ou o Enéas. Ou o Ibsen. Ou o “doutor Ulysses”. Ou o Jarbas
Passarinho. Ou qualquer outro. O barbeiro ia cortando meu cabelo com
pente e tesourinha dentada e desfiando a iniquidade da hora. E aí vinha:
— É por isso que eu defendo sabe o quê?
Eu sabia, mas fazia de conta que não.
— O quê?
— A guilotína.
Guilotína, e não guilhotina: ele engolia o “h”. E continuava:
— Bota a guilotína aí que resolve essas patifarias.
— Mas, rapaz, o Brasil nunca teve guilhotina – dizia eu sempre.
Nessa hora ele geralmente estava trocando a lâmina da navalha. Trocava e dizia:
— E é por isso que a coisa tá como tá.
E, enquanto me ensaboava a cara, concluía:
— Eu roçava aqueles pescoço tudo.
Se
eu tinha medo que ele roçasse o meu pescoço, fosse por engano, fosse
por entusiasmo? Tinha, mas não muito. Eu era freguês fiel. E meu nome
não saía no jornal. Em todo caso, melhor saber da política assim, só de
vez em quando e bem perto do fio da navalha: a gente tende a levar a
coisa mais a sério.
* * *
Tem-se
falado muito numa PEC da gastança. Se “gastança” todos sabemos bem o
que seja, embora nem todos possamos praticar, “PEC” já é uma desses
negócios do jargão político cujo aprendizado os tempos nos impõem. Para
começo de conversa, eu nem sei como é que se diz PEC: se é pê-ê-cê ou
péqui (acho que é péqui). Mas aprendi que é uma Proposta de Emenda
Constitucional. Essa da gastança, pelo que entendi, propõe emendar a
Constituição para permitir ao novo governo velho gastar mais do que já
gastava quando era só governo velho. E vi ainda que, se aprovada – eu
disse “se”? Bom dia, meu nome é Poliana –, será a centésima vigésima
sexta emenda ao texto quase perfeito de 1988.
Bem,
não há perfeição que não possa ser corrigida cento e vinte e cinco (ou
seis) vezes. Especialmente se a correção for feita para ajudar quem
gosta de gastar a… gastar muito mais. Quando vejo essas coisas, lamento
muito ser mera pessoa física e não, sei lá, pessoa constitucional: como
pessoa física, fico fora da abrangência de péquis (ou pê-ê-cês) tão
generosas. E eu bem gostaria que o Congresso me autorizasse a gastar aí
uns tantos mil reais numa viagenzinha à Europa. Ou ao Catar. Mas aposto
que se eu for à Casa Legislativa passar o chapéu da minha péquizinha,
vão mandar eu me qatar.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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