segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

Política de barbearia

 



Que saudades dos anos d’outrora, em que eu entrava no salão do meu barbeiro, um cearense baixinho, amigo do violão e da cachacinha de ocasião, e via o Notícias Populares dobrado em cima de uma mesinha. Via Crusoé, a crônica de Orlando Tosetto:


Houve tempos mais risonhos na minha vida, em que tudo o que eu sabia de política era o que ouvia de taxistas e barbeiros. Mais de barbeiros do que de taxistas, haja vista a diferença nas tarifas. Fora do âmbito desses, hum, serviços, a vida corria sem que ninguém soubesse bem quem presidia a Câmara, quem mandava em tal ou qual tribunal, quem eram os senadores do seu estado: mal e mal se sabia o nome do prefeito, e a palavra “vereador” era quase mote de piada suja.

Mas isso foi em tempos quase imemoriais: os anos 80/90. Hoje não é mais assim. Que saudades dos anos d’outrora, em que eu entrava no salão do meu barbeiro, um cearense baixinho, amigo do violão e da cachacinha de ocasião, e via o Notícias Populares dobrado em cima de uma mesinha. Eu me sentava na cadeira, vestia aquele avental que cheira eternamente a água de colônia vagabunda, respondia às perguntas de praxe (“Bem curto atrás? E em cima? Passa a máquina? Vai fazer a barba?”) e esperava o primeiro comentário.

— Viu o Brizola?

— Não vi o Brizola. O que é que ele fez?

— Rapaz…

Sempre que surgia esse “rapaz”, era bomba: o Brizola tinha aprontado. Ou o Maluf. Ou o Enéas. Ou o Ibsen. Ou o “doutor Ulysses”. Ou o Jarbas Passarinho. Ou qualquer outro. O barbeiro ia cortando meu cabelo com pente e tesourinha dentada e desfiando a iniquidade da hora. E aí vinha:

— É por isso que eu defendo sabe o quê?

Eu sabia, mas fazia de conta que não.

— O quê?

— A guilotína.

Guilotína, e não guilhotina: ele engolia o “h”. E continuava:

— Bota a guilotína aí que resolve essas patifarias.

— Mas, rapaz, o Brasil nunca teve guilhotina – dizia eu sempre.

Nessa hora ele geralmente estava trocando a lâmina da navalha. Trocava e dizia:

— E é por isso que a coisa tá como tá.

E, enquanto me ensaboava a cara, concluía:

— Eu roçava aqueles pescoço tudo.

Se eu tinha medo que ele roçasse o meu pescoço, fosse por engano, fosse por entusiasmo? Tinha, mas não muito. Eu era freguês fiel. E meu nome não saía no jornal. Em todo caso, melhor saber da política assim, só de vez em quando e bem perto do fio da navalha: a gente tende a levar a coisa mais a sério.

* * *

Tem-se falado muito numa PEC da gastança. Se “gastança” todos sabemos bem o que seja, embora nem todos possamos praticar, “PEC” já é uma desses negócios do jargão político cujo aprendizado os tempos nos impõem. Para começo de conversa, eu nem sei como é que se diz PEC: se é pê-ê-cê ou péqui (acho que é péqui). Mas aprendi que é uma Proposta de Emenda Constitucional. Essa da gastança, pelo que entendi, propõe emendar a Constituição para permitir ao novo governo velho gastar mais do que já gastava quando era só governo velho. E vi ainda que, se aprovada – eu disse “se”? Bom dia, meu nome é Poliana –, será a centésima vigésima sexta emenda ao texto quase perfeito de 1988.

Bem, não há perfeição que não possa ser corrigida cento e vinte e cinco (ou seis) vezes. Especialmente se a correção for feita para ajudar quem gosta de gastar a… gastar muito mais. Quando vejo essas coisas, lamento muito ser mera pessoa física e não, sei lá, pessoa constitucional: como pessoa física, fico fora da abrangência de péquis (ou pê-ê-cês) tão generosas. E eu bem gostaria que o Congresso me autorizasse a gastar aí uns tantos mil reais numa viagenzinha à Europa. Ou ao Catar. Mas aposto que se eu for à Casa Legislativa passar o chapéu da minha péquizinha, vão mandar eu me qatar.
 
 
BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

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