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A partir do momento em que avançamos na lógica identitária o compromisso deixa de ser possível pois as identidades não são negociáveis, o que nos deixa na terrível situação de luta política permanente. Patrícia Fernandes para o Observador:
1 Identity Politics
O termo identity politics terá sido usado pela primeira vez no manifesto do Combahee River Collective,
de 1977, e deve ser entendido como uma reação ao movimento dos direitos
civis, que marcou a política norte-americana nos anos 50 e 60 do século
XX. Este movimento, simbolizado pela figura de Martin Luther King Jr.,
lutou pela abolição da segregação e discriminação legal nos Estados
Unidos e pela reivindicação de iguais direitos civis, tendo culminado
com a aprovação do Civil Rights Act, de 1964.
Em
sentido contrário, a ideia de política identitária é estabelecida com o
argumento de que direitos iguais legalmente estabelecidos não garantem
uma condição de igualdade e justiça. Isto acontece porque alguns
indivíduos, gozando de uma identidade que os coloca em grupos
socialmente oprimidos, nunca conseguirão usufruir de condições de
igualdade. O princípio liberal do indivíduo como detentor de direitos
iguais garantidos pela lei, diz o argumento, não seria capaz de garantir
uma cidadania plena a certos grupos sociais, na medida em que, por se
ser mulher, gay, negro, latino-americano ou muçulmano, se estará sempre
em situação de marginalidade.
Por
essa razão, torna-se necessário um novo posicionamento: a reivindicação
de uma política que considere essa identidade. Só políticas
identitárias se traduzirão em medidas capazes de garantir um gozo
efetivo da cidadania por parte daqueles que pertencem a grupos oprimidos
– sendo as mais populares dessas medidas as de affirmative action ou
discriminação positiva.
É
esta ideia de política identitária que tem sido avançada pelas Teorias
Críticas que marcam o espaço académico e político norte-americano.
Notemos que o objetivo da teoria crítica enquanto ferramenta intelectual
é o de providenciar uma análise (crítica) ao modo como as instituições
funcionam, em particular ao modo como elas refletem a hierarquia de
poder na sociedade, perpetuando sistemas de opressão sobre grupos
marginalizados (sendo que cada pessoa pode pertencer a vários grupos e,
portanto, ser marginalizada e oprimida de formas concorrentes).
E para quem subscreve o que, genericamente, se tem vindo a designar como Justiça Social Crítica,
a justiça social implicará desmantelar as regras do sistema vigente
(nomeadamente o universalismo liberal e a ideia de direitos individuais)
como forma de garantir equidade (e já não igualdade) para os grupos
oprimidos. Como dizem Richard Delgado e Jean Stefancic, em Teoria Crítica da Raça: uma introdução:
“Ao
contrário de algumas disciplinas académicas, a teoria crítica da raça
possui uma perspetiva ativista. Ela tenta não apenas compreender a nossa
situação social mas também modificá-la; não apenas investigar como a
sociedade se organiza em função de divisões raciais e hierarquias mas
também transformá-la para melhor.”
2 A viragem identitária
Se
considerarmos os princípios teóricos da democracia liberal, o
aparecimento de perspetivas diferentes, nomeadamente críticas do próprio
sistema, não seria um problema. O pluralismo que o sistema democrático
liberal diz oferecer permitiria que diferentes vozes ocupem o espaço
público e apresentem as suas reivindicações. No entanto, o sucesso do
argumento identitário introduz um aspeto capaz de ferir mortalmente o
liberalismo. Para tornar esse aspeto claro, recorrerei a uma formulação
popular na filosofia: a ideia de viragem.
No
domínio filosófico, usamos a expressão “viragem” (turn, em língua
inglesa) para sinalizar um momento de mudança decisivo no modo como
articularmos as ideias filosoficamente. A mais conhecida destas
expressões é a de linguistic turn ou viragem linguística, que pretende
significar uma consciencialização por parte dos filósofos de que a
linguagem desempenha um papel fundamental no nosso pensamento, pelo que
se deve tornar objeto de reflexão filosófica. Notemos que a expressão
não significa que, a partir de agora, a linguagem vai desempenhar um
papel fundamental – significa, antes, que a linguagem sempre desempenhou
um papel fundamental, mas que só a partir de determinada altura os
filósofos se tornaram conscientes disso ou passaram a reconhecê-lo.
Analisemos
agora o argumento dos movimentos identitários. Ao introduzir a ideia de
que existem políticas identitárias, isto é, políticas que expressam os
interesses de certas identidades, este argumento contém no seu interior o
seguinte pressuposto: as políticas vigentes são, elas mesmas, resultado
de uma identidade específica e é por essa razão que precisamos de
outras políticas que defendam outras identidades. A viragem identitária
que pretendem promover encontra-se então aqui: importa que nos tornemos
conscientes de que todas as políticas são identitárias e que se as
atuais são prejudiciais aos grupos oprimidos é porque resultam de um
grupo opressor.
É
nesse sentido que os movimentos feministas identitários entendem que o
sistema atual resulta do patriarcado; os movimentos LGB falam em
heteronormatividade; e os movimentos trans referem políticas cisgénero.
Mas
talvez o melhor modo de compreender o funcionamento da viragem
identitária resulte da argumentação presente na Teoria Crítica da Raça
(TCR): a ideia central da TCR é a de que devemos reconhecer a raça como
fenómeno socialmente construído para manter um sistema de privilégio
para os brancos. O daltonismo(o não ligar a cores/raças) deve ser, por
isso, abandonado porque só nesse momento seremos capazes de compreender
que o racismo é inerente à nossa sociedade e que todos os brancos
beneficiam dele. É isto que Robin DiAngelo (a partir dos “estudos
críticos da branquitude”) nos diz em Fragilidade Branca:
“No
seu livro The Racial Contract, Charles W. Mills defende que o contrato
racial é um acordo tácito, e por vezes explícito, entre os membros dos
povos da Europa para afirmar, promover e manter o ideal da supremacia
branca em relação a todos os outros povos do mundo. Este acordo é uma
característica intencional e integral do contrato social, subjacente a
todos os outros contratos.”
(Na
mesma linha, encontramos Derrick Bell, o fundador da TCR, que defende
que a evolução dos direitos dos negros nos Estados Unidos decorre da convergência de interesses entre brancos e negros – e não em resultado de uma correção social sincera.)
Vejamos
como o argumento funciona: 1) a TCR afirma que devemos esquecer o
princípio liberal do daltonismo, isto é, o princípio de acordo com o
qual devemos ignorar a raça; 2) pelo contrário, devemos reconhecer que
as identidades raciais existem, embora sejam social e culturalmente
construídas; 3) e isso acontece porque o sistema atual é instituído para
beneficiar uma das identidades raciais (os brancos) em detrimento das
restantes.
Nas
últimas décadas, é este o argumento que tem sido introduzido no espaço
público, conduzindo a uma viragem identitária. Se a deixarmos enraizar
(é possível resistir?), entraremos num novo paradigma e passaremos a ver
todas as políticas como resultado de identidades específicas e não como
políticas universais. E é aqui que a viragem identitária ameaça
diretamente o liberalismo e os seus valores universais (o que é
explicitamente reconhecido e pretendido pelos Críticos). De facto, a
universalidade é a base do nosso sistema: consideramos o ser humano de
modo universal e por isso falamos em Declaração Universal de Direitos
Humanos. Mas o argumento identitário diz-nos que esta narrativa é apenas
uma narrativa, resultado de uma identidade específica: a do homem
branco, cis, heterossexual, etc.
3 A democracia liberal em perigo
Para
além de visar o liberalismo, a viragem identitária afeta de modo
profundo os nossos sistemas democráticos. Vejamos em que sentido.
Em
primeiro lugar, e na medida em que a lógica identitária força à
identificação identitária, estes movimentos acionam o identitarismo
inverso – o que nos Estados Unidos se tem traduzido pelo crescimento de
movimentos nativistas e de identidade branca. Em boa verdade, esta
ativação não é menosprezada pela TCR: como Robin DiAngelo diz, a
sinceridade de quem reconhece o seu racismo é preferível aos
progressistas que recusam aceitar que são racistas.
Em
segundo lugar, a visão identitária introduz uma nova lógica de
legitimidade política: essa legitimidade passa a resultar do lugar que
determinada pessoa ocupa na sociedade considerando a sua identidade (ou
diferentes identidades). É aquilo a que os brasileiros, numa expressão
deliciosa, chamam “o lugar de fala”. A partir desta perspetiva, a
validade das nossas afirmações vai depender do lugar que ocupamos e que
nos colocará mais ou menos perto da verdade: alguém que fale a partir de
um grupo oprimido terá um acesso mais privilegiado à verdade porque a
sua experiência de opressão é uma experiência mais real e verdadeira de
como o sistema funciona. E todas as vozes que não coincidam com a
descrição do mundo validada pelos Críticos serão desvalorizadas como
resultando de posições de privilégio ou de falsa consciência, sendo, por
isso, menos verdadeiras. A consequência, em última instância, é a de
que todo o artefacto do discurso argumentativo e racional deve ser
esquecido: ele resulta da forma de ver o mundo do opressor, com o
objetivo de desvalorizar a experiência real de opressão.
Em
terceiro lugar, se toda a política é identitária, deixa de haver espaço
para o mecanismo em que assenta a democracia liberal: a representação.
Se o sistema é apenas reflexo de uma identidade dominadora, nenhuma
instituição nos pode representar, nem devemos aceitar a ideia de que
alguém possa defender interesses nacionais ou universalmente humanos. A
nova representação (a representatividade) deverá ser identitária, pois
só assim se garante que a voz do oprimido é ouvida e que ele participa
no sistema.
Por
fim, recordemos que o funcionamento da democracia liberal assenta em
diferentes vozes, que trocam argumentos no espaço público, tendo em
vista negociar e chegar a um compromisso. A velha forma de percecionar a
política centrada em interesses económicos e na pertença a classes
garantia esse espaço de discussão, negociação, cedências e compromisso.
Mas a partir do momento em que avançamos para uma lógica identitária, o
compromisso deixa de ser possível pois as nossas identidades não são
negociáveis, não podem ser alvo de compromisso. E isso deixa-nos na
terrível situação de luta política permanente.
PS: Convoco, desta vez, o caso de Brett Weinstein
como exemplificativo da radicalização emocional a que podem conduzir as
demandas identitárias: Weinstein opôs-se à proposta de um dia de
ausência voluntária de brancos na Evergreen State College (por
considerar que era discriminatória), e a reação estudantil acabou por
conduzir à sua demissão.

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