Henrique Lessa
Correio Braziliense
A campanha pela reeleição do atual presidente Jair Bolsonaro (PL) contou com apoio expressivo de setores evangélicos. Apesar disso, alguns nomes da esquerda ligados a esses princípios religiosos conseguiram êxito nas urnas, e um deles é o pastor Henrique Vieira, eleito deputado federal pelo PSOL no estado do Rio de Janeiro.
Pastor da Igreja Batista do Caminho, Vieira foi eleito com 53.933 votos, e garante que não fará um mandato para defender os interesses da sua igreja. O líder evangélico se define como um “pastor antifundamentalista”. Além da religião, Vieira é ator, professor de história, escritor, esposo da Caroline e pai da Maria.
Vieira julga que a vitória do presidente eleito Lula da Silva (PT) foi um feito extraordinário, pois, segundo ele, o petista enfrentou um adversário que não respeitou os padrões democráticos.
Como avalia a vitória do presidente Lula?
Foi uma vitória importante, enfrentamos uma máquina de
fake news, um uso inescrupuloso do orçamento público. Enfrentamos a
extrema-direita que não faz política dentro das demarcações da
democracia. Agora temos a tarefa de unificar o país, reestabelecer laços
de diálogo e superar a fome.
Como entendeu a sinalização do pastor Silas Malafaia e do Bispo Edir Macedo ao Lula?
São declarações diferentes. Malafaia fala que vai orar
pelo presidente, que respeita o resultado das urnas, isso é o básico do
básico. Mas, ao mesmo tempo, continua chamando o Lula de ladrão, que o
Brasil será governado por um ímpio, e dizendo que tem vergonha dos
evangélicos que votaram nele. Ele continua nessa linha da hostilidade,
na violência linguística, continua criando um ambiente de hostilidade
entre irmãos na fé. Ele tem um espírito de guerra aquele homem, lamento
profundamente. Já Macedo, estou tratando como dissimulado e pragmático.
Ele não me convence nem me comove. Tem uma fala mais pacífica, mas a
poucos meses ele falava “ou é cristão ou é de esquerda”. Acho que é um
movimento mais pragmático, ele quer sempre se acomodar nas estruturas de
poder. O diálogo com o campo evangélico não pode ficar refém de
Malafaias e Macedos.
Há erro teológico nas declarações?
Orar pelas autoridades não é um erro teológico, e perdoar
também não. Mas não dá para ler a frase sem contexto, ou sem saber quem
está falando. A teologia não está só na frase. São articuladores
político-religiosos que têm uma teologia violenta.
A declaração da presidente
do PT, Gleisi Hoffmann, a respeito do perdão de Macedo a Lula não pode
afastar uma parcela dos evangélicos?
Acho que a Gleisi não está errada. Estará errada se
desistir de dialogar com o povo evangélico, que não é Macedo. Ele é um
homem poderoso, com muita influência, com muito dinheiro, com uma igreja
enorme, isso é verdade. Mas nos termos que ele coloca eu não me
aproximaria.
Mas o bispo Macedo e o pastor Malafaia já foram muito próximos aos governos petistas…
Essa é uma crítica que eu tenho ao PT. Eu mantenho minha
linha de coerência, dialogar com o povo evangélico não significa ser
refém de determinadas lideranças. Dialogar é importante, fazer alianças é
outra coisa
A esquerda não se comunica com o público evangélico com a mesma eficácia que os setores de direita. Por quê?
Acho que a esquerda precisa, sim, aperfeiçoar sua
linguagem e fortalecer o trabalho de base para além da sinalização
pública em um contexto eleitoral. Foi uma resposta necessária contra a
máquina de mentira e ódio. Mas quando se pergunta por que a esquerda não
consegue, parece que tivemos um adversário normal, e não o fascismo,
uma extrema-direita com uma máquina de fake news, com uso criminoso das
redes sociais, com um subterrâneo de informações no WhatsApp. Aí parece
que é um debate sobre por que a esquerda não melhora, como se as
condições fossem iguais de disputa. Eu acho que o Bolsonaro e o
bolsonarismo estão fora dos padrões éticos e legais da democracia.
Precisamos é perguntar para a extrema-direita quais os mecanismos de
debate que ela utiliza. Eu, para ser candidato me licenciei do púlpito
da minha própria igreja, como um sinal ético de respeito à autonomia da
igreja e à liberdade de consciência dos irmãos. Os bolsonaristas fizeram
isso? Ou aparelharam a igreja, os cultos e os púlpitos para fazer
campanha?
O senhor pretende voltar ao púlpito durante o mandato?
Ainda estou debatendo isso com a liderança da minha
igreja, devo pregar eventualmente. Isso não é atividade, é vocação
divina. Mas neste momento a minha forma de servir ao povo, e aos
princípios que eu creio básicos da minha fé, vai ser no Parlamento,
defendendo a democracia, o estado laico, os trabalhadores e os
empobrecidos do Brasil.
Um pastor defende o Estado laico?
Deveria ser normal todo pastor defender o estado laico. A
tradição protestante-evangélica nasce defendendo o estado laico. O
protestantismo no seu berço já no século 16 defende a autonomia da
igreja perante o Estado. Então, em tese, a questão seria: como um pastor
não defende o estado laico se faz parte da tradição
protestante-evangélica a separação entre igreja e estado e o respeito
profundo a todas as religiões?
O Estado laico está em risco?
Há essa preocupação, mas o Estado no Brasil nunca foi
efetivamente laico. Isso só apareceu formulado na Constituição de 1891, e
mesmo assim, de lá até hoje, com muita fragilidade. Há uma hegemonia
cristã institucional no Estado brasileiro, e nós temos que lutar muito
para criar um ambiente cultural verdadeiro de respeito a todas as
religiões e inclusive à não-crença. O estado laico é muito frágil e está
sob ataque nesse momento.
O presidente Bolsonaro
mencionou, por vezes, que os cristãos no Brasil sofrem perseguição,
chamada de ‘cristofobia’. Como o senhor enxerga isso?
Não existe no Brasil. O que existe no Brasil é uma
violência contra as religiões de matriz africana. Se ele está chamando
cristofobia o ataque a igrejas, é muita insensibilidade. As igrejas no
Brasil não sofrem perseguição, podem livremente manifestar sua fé. O que
é apedrejado, ameaçado, perseguido é pai de santo, é mãe de santo, são
os terreiros. As igrejas, no meu entendimento, encontram um ambiente de
liberdade para expressão da sua fé. Bolsonaro acha que cristofobia é
igreja perseguida. Se eu for para a Bíblia, Jesus se identificou com os
pobres, os famintos, ele fala ‘quando tive fome me deram de comer,
quando tive sede me deram de beber, quando estava nu vocês me vestiram’,
então Cristo não se identificou com um templo, ou com uma religião.
Cristo se identificou com os famintos, com os empobrecidos, com os
vulneráveis. Do ponto de vista teológico, cristofobia é massacrar pobre,
explorar o povo e propagar a violência. Bolsonaro é cristofóbico, tem
aversão completa ao Jesus do evangelho. Esse Jesus está no rosto de uma
criança pobre passando fome, ou na lágrima de uma pessoa que perdeu um
parente pela covid. Quem despreza a fome e o luto, está tendo fobia de
Jesus Cristo.
O que explica essa visão não ser a partilhada por todos os crentes?
Infelizmente não é uma novidade que exista um tipo de
cristianismo poderoso institucional que legitima mulheres na fogueira da
inquisição, escravidão sobre o povo negro e dizimação dos povos
indígenas. Infelizmente não é uma novidade o cristianismo sem Jesus
Cristo. Ao longo desse tempo, também temos milhares de exemplos de
cristianismos singelos, populares, amorosos, só propagando a paz, a
justiça, e defendendo a causa dos oprimidos. Esse não é um fenômeno
atual, o meu povo negro foi escravizado sob a benção de determinado
cristianismo há séculos. Para mim o fundamentalismo bolsonarista é a
atualização desse cristianismo colonizador. Mas esse cristianismo
mataria Jesus usando o nome dele para isso.
A esquerda pode usar dessas técnicas?
Onde houver fake news eu serei contra, seja de direita ou
de esquerda. Não quero ganhar de qualquer jeito. Crer em Jesus e não
caminhar como Jesus é um grande contrassenso. Tem muitas pessoas que
creem e confessam com os lábios, mas têm uma prática e um fruto de vida
completamente incompatível com o evangélico. O próprio Jesus não quer
ser elogiado, ele que ser levado adiante como fruto de amor de compaixão
e de solidariedade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário