BLOG ORLANDO TAMBOSI
A internet abriu, mais uma vez, a caixa de Pandora de toda a loucura política. Fernando Schüler para a revista Veja:
Dia
desses deparei com uma curiosa nota do Banco Rodobens. Com as contas
bloqueadas, por uma decisão de nossa Suprema Corte, acusado de financiar
“atos antidemocráticos”, envolvendo aqueles caminhões indo a Brasília, o
banco candidamente explicava que “não tinha nada com isso”. Seu negócio
era fazer “leasing operacional” de caminhões, para transportadores,
Brasil afora, dizia a nota. Fiquei me perguntando (talvez não devesse)
com que base de informações nossa Suprema Corte toma decisões como essa.
“Talvez não tenham checado direito”, foi a melhor explicação que
obtive. De fato, a empresa não tinha nada a ver com aquilo, mas não é
esse o ponto aqui. O bloqueio das suas contas é apenas um dos exemplos
citados no pedido de abertura de uma CPI, no Congresso Nacional, esta
semana, para investigar a enorme sequência de abusos cometidos contra
direitos fundamentais de nossa democracia, nestes anos tristes. Há
coisas bem mais graves acontecendo, e não faço ideia se a CPI vai
prosperar. O ponto é que há uma ferida aberta, na democracia brasileira,
e quem não emigrar para Portugal ou para o Canadá, e tem alguma
responsabilidade com o país, deveria se preocupar com isso.
O
caso da Rodobens ilustra o que muita gente vem chamando de “democracia
militante”, no Brasil atual. A ideia é elegante e foi desenvolvida pelo
jurista alemão Karl Loewenstein, no mundo sombrio da Alemanha dos anos
30, em meio ao desmoronamento da República de Weimar, diante do nazismo.
Loewenstein exilou-se nos Estados Unidos e escreveu extensamente sobre
como a democracia deve prever mecanismos de defesa contra os
extremismos, incluindo-se aí a suspensão de certas garantias diante de
ameaças “existenciais” a sua própria sobrevivência. Ele acusava a
inépcia da “cegueira legalista” para perceber como as democracias podem
se tornar o “cavalo de Troia pelo qual o inimigo entra na cidade”. A
tese referia-se ao nazismo, e serviu para algumas medidas protetivas no
redesenho da democracia alemã, no pós-guerra. Ao longo do tempo, no
entanto, o argumento correu o mundo. Foi usado para combater movimentos
ora à direita, ora à esquerda, e ressurgiu com força aqui pelos
trópicos, nos últimos anos, diante da ascensão de Bolsonaro
e sua “nova direita”. Muita gente acha que é assim que deve ser. Há,
porém, quem ache o contrário. Que nada temos a ver com a Alemanha, que é
preciso tomar cuidado com a “falácia do Hitler” e que nosso problema
real é o oposto: o desrespeito a direitos fundamentais por parte de quem
deveria ser intransigente na sua proteção.
Nessa
visão, andamos em um caminho perigoso. Em nome da “democracia
militante”, o professor Marcos Cintra foi sumariamente banido das redes
sociais, acontecendo o mesmo com o empresário Luciano Hang,
aparentemente, por “não dizer nada” em um diálogo irrelevante, em um
grupo também irrelevante (e privado) no WhatsApp. Em nome da “democracia
militante”, um partido comunista minúsculo foi censurado e banido, por
supostamente “ameaçar a democracia” em um tuíte que quase ninguém leu.
Em seu nome, a censura prévia voltou com força, ao país, sem a menor
cerimônia, e quarenta e tantas empresas tiveram suas contas bloqueadas,
dias atrás, por um suposto crime de “abuso de reunião”. O caso levou a
um ainda tímido protesto de seccionais da OAB, contrariadas com uma
decisão feita “sem qualquer notificação prévia dos supostos envolvidos,
nem mesmo o Ministério Público, sabidamente fiscal da lei”. Algo que
agride “consagrados princípios constitucionais do devido processo legal,
da ampla defesa e do contraditório”.
De
minha parte, acho fascinante o argumento da “democracia militante”. Em
primeiro lugar, porque ele extrai de uma situação efetivamente
excepcional, que foi a ascensão do nazismo, uma régua a ser aplicada,
não raro de modo vulgar, nas democracias em pleno funcionamento.
Democracias em que o contínuo mal-estar da polarização e do ódio digital
facilmente se confunde com tipos variados de “risco existencial”, como
tantas vezes escutei, no Brasil atual. Outro aspecto fascinante é dado
pelas seguintes perguntas: quem teria a prerrogativa de decidir quem é o
inimigo existencial e a quem deveríamos entregar o poder de agir para
além das leis e da Constituição, uma vez definida a situação
“excepcionalíssima”? E mais: que instrumentos a democracia militante nos
daria para nos proteger dela mesma? Se um ministro decide censurar e
banir um deputado, mesmo que a Constituição diga claramente que ele não
pode fazer isso, o que fazer? E se um filme é censurado, quando as leis
dizem que isso não pode ser feito? Uma hipótese é ir levando. Lançar uma
nota, dar explicação, fazer de conta que tudo está bem, tomar cuidado
para “não sair da linha”, como escuto por aí. É possível imaginar que,
em democracias avançadas, existam mecanismos para controlar o “leviatã
militante”. Mas, nas democracias em que esses mecanismos parecem nunca
funcionar, como deveríamos agir, exatamente?
Nesses
casos, o risco é uma sutil inversão: não mais a democracia, mas a
“autoridade militante”. A autoridade que, devendo funcionar como juiz
imparcial, subitamente surge como jogador. A imagem disso foi aquela
multidão ofendendo ministros, em Nova York, e a frase do ministro
Barroso: “Perdeu, mané”. Entendo o seu desconforto. Ele é um sintoma.
Está no olhar, está nas palavras: o mané, o gado, o “xucro”. E
vice-versa. O outro como o desprezível, do qual devemos nos
“desintoxicar”, como li de um intelectual animado por estes dias. O
curioso é que um dia já foi assim com a cisão religiosa. O protestante
já foi tóxico, assim como o judeu. Foi exatamente para lidar com essa
“vontade de domínio” que inventamos a democracia liberal. E parecemos
esquecer, de tempos em tempos.
A
internet complicou tudo isso porque deu voz ao vulgo, ao homem comum, e
abriu, mais uma vez, a caixa de Pandora de toda loucura política. Dias
atrás dei uma olhada nos trend topics do Twitter (não recomendo) e
estava lá: “Ladrão não sobe a rampa”, “Malafaia na cadeia”, e um
recorrente “Vai tomar no c…”, talvez a síntese perfeita de nosso atual
debate digital. O ponto é que há um trade-off aí: quanto maior a carga
de barulho e radicalismo, disseminado na sociedade, maior a exigência de
que as instituições andem na trilha oposta, com frieza e
distanciamento. Do contrário, surge um duplo problema de legitimidade:
das instituições, que começam a ser vistas não como árbitros, mas como
partes do jogo, e dos interessados em desestabilizar essas mesmas
instituições, vendo o seu radicalismo ganhar ares de virtude, diante da
falta de isonomia e do “ativismo” de quem deveria agir nos estritos
limites da lei. Uma república se faz precisamente da recusa da “tentação
militante”, que jamais deve migrar do universo fraturado e hostil de
nossas sociedades abertas para o universo das instituições. O desafio
está posto.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Publicado em VEJA de 30 de novembro de 2022, edição nº 2817
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