O Brexit de sonho lindo está a transformar-se num pesadelo bem real. Será que isto basta para deixar de ser a marca identitária de muitos conservadores britânicos? Espero que sim, mas duvido. Bruno Cardoso Reis para o Observador:
O
descalabro político e económico britânico das últimas semanas pesa
sobretudo sobre o Reino Unido, mas tem também impacto regional e até
global. Contribui para o sentimento generalizado de incerteza e de crise
do Ocidente. Apesar dos erros catastróficos de Liz Truss nas últimas
semanas, a Grã-Bretanha continua a ser a quinta maior economia global e a
terceira maior potência militar do Mundo, a mais importante da Europa
Ocidental. A agora demissionária líder conservadora britânica, eleita no
início de Setembro pelos militantes, tem grande responsabilidade
pessoal na situação presente, mas o problema vai muito para além dela e
não se resolverá apenas com a sua saída.
A trapalhada de Truss
É
assim que muitos conservadores têm descrito o que se tem passado no seu
governo e no seu partido durante as últimas semanas – a shambles – uma
trapalhada. O que ajuda a explicar o facto sem precedentes de uma líder
recém-eleita ser forçada a sair ao fim de pouco mais de mês em funções,
isso e, claro, o facto político fundamental de Truss não se ter sujeito a
eleições gerais. Há um dito nos corredores de Westminster – todas as
vidas políticas acabam em fracasso. Duvido que isso sirva de grande
consolo para Truss. Num sistema tão competitivo como o britânico, mesmo
um líder bem-sucedido muitas vezes acaba, de facto, por ser forçado a
abandonar o poder. Foi o caso de Margaret Thatcher, forçada, em 1990, a
deixar a chefia do governo pelo seu próprio partido. É muito diferente,
no entanto, essa desgraça acontecer ao fim de onze anos, controversos,
mas marcantes, ou ser-se forçada a sair ao fim de 45 dias, como é o
caso.
Truss
fica na história política do Reino Unido, mas pelas piores razões, como
a chefe do governo que menos tempo esteve em funções. Até aqui o
detentor desse recorde era George Canning, primeiro-ministro por 118
dias, em 1827. E apesar de tudo Canning já tinha tido uma carreira
distinta, como diplomata, inclusive como embaixador em Portugal, e, por
duas vezes, como Ministro dos Negócios Estrangeiros tendo, por exemplo,
um papel relevante na negociação do reconhecimento da independência do
Brasil. Canning também tinha a melhor justificação possível para ser
forçado a abandonar o cargo ao fim de tão pouco tempo – morreu em
funções.
Já
Liz Truss ficará conhecida como a líder conservadora que ao fim de
pouco mais de mês no cargo tinha uma taxa de aprovação de 7% e uma taxa
de inflação de 10%. Na sua carreira política, iniciada em 2010, nunca se
distinguiu particularmente, exceto pela ambição. Teve aliás uma
trajetória algo sinuosa, iniciada ainda na universidade de Oxford, como
líder da juventude de outro partido, os Liberais-Democratas, numa altura
em que se dizia republicana. Também começou por se opor ao Brexit, para
depois, como Ministra dos Negócios Estrangeiros de Boris Johnson, se
tornar na pouco diplomática porta-voz do setor mais hostil à União
Europeia. A única coisa que parecia dar alguma coerência ao percurso
político de Liz Truss era ser muito favorável ao setor privado e à baixa
de impostos. Fez dessa agenda a grande bandeira da sua campanha para a
liderança dos conservadores. Foi avisada pelo seu rival, o ex-ministro
das finanças Rishi Sunak, de que esse tipo de choque fiscal num momento
de colossais despesas públicas para atenuar o efeito de uma enorme
volatilidade seria irresponsável e poria em risco a estabilidade
económica.
Truss
ignorou os avisos, conquistou o apoio dos militantes conservadores, e,
honra lhe seja feita, cumpriu a promessa, criando um enorme buraco
orçamental, seguido da queda a pique da libra e do disparar das taxas de
juro. Se há uma coisa que a história política britânico nos mostra é
que os britânicos dificilmente perdoam a quem preside a uma
desvalorização brutal da sua moeda. Truss ficou fatalmente ferida:
tentou manter-se em funções, mas sem credibilidade, sem programa, sem
poder, acabou por ser forçada a sair. Mas Truss é só a face mais recente
da instabilidade criada pelo Brexit de 2016 em diante.
O fracasso do Brexit
Liz
Truss fracassou em toda a linha e muito do desaire é pessoal. O seu
falhanço, no entanto, é também revelador de um problema mais amplo e
complicado: a impossibilidade de o Brexit cumprir as promessas
irrealistas com que o sobrecarregaram os seus promotores.
Ao
nível da economia, o Brexit era suposto garantir de forma rápida a
libertação das “regras de Bruxelas” e um crescimento económico muito
forte, resultando ainda num bónus significativo sob a forma de reforço
do investimento nos serviços públicos. Porém, o crescimento económica
britânico pós-Brexit tem sido anémico. A pandemia e a guerra não ajudou,
mas isso não explica tudo, a Grã-Bretanha era 90% da economia da
Alemanha antes Brexit agora é 70%. Esta trapalhada de Truss resulta
também de uma tentativa desesperada, ignorando um contexto adverso, de
acelerar a economia. Mais, as ditas regras de Bruxelas afinal incluíam
regras de bom-senso na gestão da economia como não se poder reduzir
brutalmente receitas e aumentar brutalmente despesas sem se pagar um
preço elevado por isso.
O
fracasso do Brexit não se fica por aqui. Na política interna, o Brexit
era suposto acabar com as divisões no seio do partido conservador.
Claramente isso não aconteceu. Apesar da ampla maioria conservadora
obtida nas eleições de 2019 – com base no carisma de Boris Johnson, nas
promessas do Brexit, e no estado desastroso dos trabalhistas – os tories
não conseguem dar estabilidade ao país porque continuam em guerra
civil. Querem provas? Em 2022, um ano de enormes desafios globais, a
Grã-Bretanha vai a caminho do terceiro primeiro-ministro e já teve
quatro ministros das finanças!
Por
fim, no campo da política externa, o Brexit era suposto voltar a fazer
da Grã-Bretanha uma grande potência global. Era suposto também ajudar a
reforçar ainda mais as suas relações com os EUA. É evidente que o
prestígio e a credibilidade britânica no mundo ficam abalados com estes
crises sucessivas. Basta recordar que o anterior ministro das finanças,
Kwasi Kwarteng, teve de ser chamado de volta de urgência quando estava
numa visita à capital norte-americana para ser demitido! E, por falar em
EUA, o presidente Biden fez questão de vir publicamente distanciar-se
das opções políticas de Liz Truss. Sobretudo, o prometido acordo de
comércio livre entre britânicos e norte-americanos não parece próximo. O
Brexit de sonho lindo está a transformar-se num pesadelo bem real. Será
que isto basta para deixar de ser a marca identitária de muitos
conservadores britânicos? Espero que sim, mas duvido.
A
mim parece-me evidente que uma Grã-Bretanha forte e credível faz falta,
mais ainda numa Europa que enfrenta a agressão russa. Uma das possíveis
vítimas desta trapalhada é, aliás, o anunciado reforço significativo do
orçamento da defesa britânico. Será fundamental que Londres se deixe de
delírios nacionalistas e retome as suas melhores tradições de bom-senso
e pragmatismo, na política económica, na política externa, e nas
relações com os seus vizinhos europeus, deixando de ter na União
Europeia o eterno bode-expiatório da retórica política interna. Teremos
de ver se será assim, porque quem tem grandes certezas sobre a política
britânica nos tempos que correm não está a perceber bem o que se está a
passar.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário