'O Diálogo Possível', de Francisco Bosco, propõe acordo entre as concepções de liberdade da esquerda e da direita. João Pereira Coutinho para a FSP:
Tem
uma certa graça: o Brasil em estado febril com a eleição presidencial e
eu aqui, ao longe, lendo o livro de Francisco Bosco, O diálogo
possível: Por uma reconstrução do debate político brasileiro (Todavia),
um tratado de racionalidade e moderação sobre o presente e o futuro do
país. Pareço um maluco, no meio da tempestade, segurando uma vela e
protegendo a sua chama frágil. Há destinos piores.
Mas
regresso ao livro. Como é bom ver que existe pensamento esclarecido no
Brasil! O livro de Bosco é, tão só, uma tentativa de limpar as palavras
que se usam e abusam no debate político e apontar um caminho para fora
do lamaçal. Sobre a limpeza, o autor tem razão: a construção do mundo
começa com a linguagem. Como imaginar um futuro partilhado para o Brasil
quando esquerda e direita constroem imagens do inimigo (no sentido
schmittiano do termo) que, para além de deformantes, são sobretudo
malignas?
Não
vale a pena perder tempo sobre o significado real, histórico,
filosófico, de “comunismo” e “fascismo”. A bibliografia sobre o assunto,
que poucos leem, é vasta e profícua. Mas quem pensa que o Brasil,
depois desse primeiro turno, se divide entre comunistas e fascistas está
obviamente num estado de alienação tal que só a psiquiatria pode
resolver.
Eis
a primeira premissa de Bosco: baixar a temperatura do debate e explicar
como a polarização de hoje é um produto da irresponsabilidade
institucional de PSDB e PT. Os governos de ambos sempre foram marcados
pela continuidade, ainda que distintos no modus operandi: o PSDB
implementando as políticas públicas e fiscais que dariam corpo real às
aspirações da Constituição de 1988 (simplificando, um Estado de
bem-estar social) e o PT aprofundando e ampliando essas políticas.
Fatalmente,
a retórica cedo começou a deformar a realidade. O PSDB, considerado
“neoliberal” pelo PT; e o PT, a partir da primeira eleição de Lula,
pintado com as cores do radicalismo. A corrupção dos anos posteriores
completou a demonização da esquerda, mesmo que essa mancha não tenha
prerrogativa ideológica, como lembra Bosco.
O
resultado é esse ambiente de ficção em que sempre encontrei o país
nesses últimos 20 anos: amigos de direita dizendo que o Brasil seria a
próxima Cuba e amigos de esquerda declarando, com náusea, que metade dos
seus concidadãos usava uma suástica no braço. Seria para rir se as
consequências não fossem tão dramáticas.
Francisco
Bosco quer menos dramatismo e, na melhor parte do livro, explica o que
entende pelo seu centro vital. Não, não é o centro pragmático em que
todos conciliam os seus interesses. Também não é o Centrão fisiológico,
patrimonialista e invariavelmente corrupto que só a disfuncionalidade do
sistema político brasileiro permite. É um centro onde duas concepções
de liberdade podem ser acomodadas, tal como Isaiah Berlin recomendava.
Por um lado, a liberdade negativa que permite aos indivíduos agirem (ou
não) sem serem intencionalmente coagidos pelo Estado; por outro, a
liberdade positiva, que capacita esses mesmos indivíduos a exercerem
essa liberdade.
Fins
incompatíveis? Sim, se levados até sua expressão máxima, tal como
defendem os fanáticos. Nas sociedades reais em que vivemos, o que existe
são compromissos. Isso significa, em linguagem prosaica, que talvez o
Brasil deva ser mais de direita para baixar a sua carga tributária alta e
os seus gastos públicos imensos; e também mais de esquerda, ao combater
a desigualdade brutal, os seus serviços públicos ineficientes e a sua
tributação regressiva. Pois é, ninguém disse que era fácil.
No
fundo, percorrendo o trajeto normal dos liberais modernos (ou sociais,
ou progressistas, ou de centro-esquerda), Francisco Bosco entende que o
espírito do liberalismo não se encerra na oposição ao abuso e ao
privilégio políticos (sua função clássica, digamos, e fim primeiro da
democracia liberal e representativa). É preciso ir mais além, trazendo
para o Brasil do século 21 o que a Europa implementou no século 20:
direitos sociais de cidadania efetivamente universais.
“O
intelecto humano é impotente contra a vida pulsional”, dizia Freud,
citado pelo autor. Mas também acrescentava: “A voz do intelecto é baixa,
mas ela não descansa enquanto não receber atenção”. Que este livro
possa receber a atenção que merece depois de 30 de outubro. Quando
chegar a hora de limpar os destroços.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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