A proposta de paz do homem mais rico do mundo mostra que falta noção - e entendimento sobre a disposição de luta dos ucranianos. Vilma Gryzinski:
Conquistar Marte, fazer paraplégicos andar e agora voltar a negociar a compra do Twitter são coisas que só visionários da estirpe de Elon Musk conseguem conceber, planejar e colocar em execução.
Mas isso não significa que ele tenha capacidade de resolver a guerra na Ucrânia,
como mostram as reações negativas à sua proposta de dar a a anexação da
Crimeia por consumada e fazer plebiscitos supervisionados pela ONU em
territórios disputados. A Ucrânia
também garantiria o fornecimento de água à Crimeia e se comprometeria a
ser um país neutro – ou seja, não entraria para a Otan. Propôs que seus seguidores no Twitter votassem contra ou a favor de seu plano.
Musk
não explicitou como tiraria os russos desses territórios, só para ficar
numa das questões fundamentais sobre a legitimidade um plebiscito dessa
natureza.
Fazer
plebiscitos com o exército russo dentro deles já acabou de acontecer,
com nada surpreendentes resultados de quase 100% de aprovação à sua
anexação. Uma encenação grotesca.
O
timing da “proposta” de Musk também foi infeliz. Coincidiu exatamente
com um avanço quase inacreditável das forças ucranianas na região de
Kherson. Em dois dias, avançaram cerca de 23 quilômetros num território
que dava a impressão de ser inexpugnável pela concentração de tropas,
inclusive unidades de elite.
Os
russos parecem ter desistido de lutar, ficando com três opções, uma
pior do que a outra: bater em retirada organizada, fugir
desorganizadamente ou cair no campo de batalha.
Propor
concessões a um Exército que está avançando foi provavelmente uma
iniciativa bem intencionada de Elon Musk, embora recebida com
indignação.
“Aqueles que propõem à Ucrânia que abra mão de população e território – presumivelmente para não magoar o ego de Putin
– precisam parar de usar a palavra ‘paz’ como um eufemismo para ‘vamos
deixar os russos estuprar e matar mais milhares de ucranianos inocentes e
ocupar mais terras’”, fulminou o ministro das Relações Exteriores,
Dmitro Kuleba.
O presidente Volodymyr Zelensky
também entrou na briga e propôs uma outra pesquisa no Twitter: “Quem
você prefere: a) o Musk que apoia a Ucrânia; b) o Musk que apoia a Rússia?’”. A primeira hipótese estava ganhando com 96% dos votos.
Musk
lembrou que prestou uma ajuda totalmente grátis e fundamental para a
Ucrânia, ao fornecer equipamento para sua rede de satélites Starlink, o
que garantiu a conexão com a internet. Frequentemente, ucranianos
convocados para a guerra fazem vídeos de agradecimento a ele.
Em
defesa de sua proposta, Musk argumentou que “a Rússia tem três vezes a
população da Ucrânia, portanto uma vitória ucraniana é improvável numa
guerra total”.
Ele
não levou em conta um elemento fundamental: os ucranianos não querem
fazer concessões territoriais aos russos. Uma pesquisa feita no mês
passado pelo Instituto de Sociologia de Kiev mostrou que 87% são contra
essa barganha. Na turma do não incluem-se 57% dos ucranianos que são
etnicamente russos – exatamente os que Vladimir Putin disse que queria
defender dos “nazistas”.
Para
reforçar esta disposição, Zelensky assinou um decreto que simplesmente
proíbe negociações ou qualquer tipo de concessão à Rússia.
O
ódio ao invasor que atacou o país sem nenhuma justificativa, praticando
atrocidades que são mostradas diariamente nas redes sociais, é muito
mais forte do que qualquer possibilidade de acordo com o inimigo. Essa é
uma característica da psique coletiva de povos eslavos demonstrada
inclusive durante o sofrimento inenarrável suportado durante a II Guerra
Mundial.
A
descoberta de massacres, violações e torturas em lugares como Bucha e
Izium significa que “se alguma vez houve espaço na opinião pública
ucraniana para fazer concessões à Rússia, este espaço agora se fechou”,
segundo uma análise da revista New Yorker.
Sem
contar o avanço das forças ucranianas não só na região de Kherson, ao
sul, como em Luhansk. Por causa dessas vitórias, Putin adiantou o
recrutamento de reservistas e a realização dos plebiscitos ilegítimos
que provocaram a declaração de anexação.
Se os ucranianos recusam compromissos e a Rússia tem a vantagem brutal de um enorme arsenal nuclear, como a guerra pode acabar?
Essa
é uma pergunta que envolve nada menos do que o destino da humanidade:
se a Rússia estivesse na iminência de uma derrota, possivelmente usaria
uma arma nuclear tática, ou seja, de alcance limitado. Estados Unidos e
aliados europeus teriam que responder, possivelmente com um bombardeio
arrasador da frota russa no Mar Negro, e daí estaria formado o quadro da
guerra total, com ataques e retaliações em escala apocalíptica.
A
alternativa seria um golpe que tirasse Putin do Kremlin, mas todos os
especialistas concordam que o eventual substituto poderia ser pior
ainda. As críticas internas que ele vem recebendo por pegar “leve
demais” no conflito atual indicam exatamente isso. Toda a elite política
e militar russa é formada sobre o conceito de que a Rússia jamais pode
fazer concessões.
A
hipótese contrária também é inconcebível: uma vitória russa sobre uma
Ucrânia arrasada, por meios convencionais ou nucleares, seria
inaceitável para a aliança ocidental, pois todos os países fronteiriços
que têm minorias russas estariam imediatamente sob risco de invasão.
Isso inclui os três países bálticos que fazem parte da Otan. Um ataque
russo contra eles exigiria uma resposta coletiva, como estabelece o
Artigo 5 da carta da aliança, levando portanto à mesma situação de
guerra entre as duas maiores potências nucleares do mundo.
Ninguém
tem respostas factíveis para esses dilemas. Muito menos Elon Musk, que
ainda passou pelo vexame de ter sua proposta considerada “muito
positiva” pelo porta-voz de Putin, Dmitri Peskov.
Detalhe
nada tranquilizador: centros de evacuação de Kiev estão recebendo
estoques de pílulas de iodeto de potássio, que têm ação preventiva para o
câncer de tiróide provocado por doses altas de radiação se tomado
imediatamente depois do evento maligno, seja um vazamento em usina
nuclear, seja uma bomba.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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