sábado, 29 de outubro de 2022

Excesso de especialização, crise epistemológica.

 



A formação superior universitária gera multidões de profissionais com conhecimento técnico específico, porém com fraca formação universal. Artigo do professor José Pio Martins para a Gazeta do Povo:


Certa vez, eu lia sobre estratégia e planejamento aplicados à arte da guerra e me deparei com a seguinte afirmação: “Estratégia e planejamento são palavras que têm pelo menos duas dezenas de definições”. Fiquei pensando: se uma palavra tem 20 definições, como escolher uma definição que efetivamente explique o que a coisa é? Definir é dizer o que a coisa é.

Há anos participei de um grupo de estudos em Filosofia e Ciência Política e vi o quanto é certa a afirmação de Friedrich Hayek: “Não é bom economista quem é apenas economista”. Na sequência, fiz um curso de Filosofia com vistas a preencher a lacuna citada por Hayek e constatei a beleza e a profundidade das teorias, ideias e conhecimentos proporcionados pelos grandes pensadores.

Entre os maiores teóricos da Economia, muitos tinham sólida formação em Filosofia; outros eram filósofos antes de se tornarem economistas, como John Maynard Keynes, Ludwig von Mises, Friedrich Hayek, Karl Marx e Adam Smith. A Filosofia se dedica à investigação da dimensão essencial e ontológica do mundo real e vai além da opinião irrefletida do senso comum. A construção de saberes lógicos, racionais e sistemáticos a partir de argumentos e conceitos para produzir conhecimento válido é um objetivo da Filosofia e serve de base para o ensino superior.

Nesse contexto, surge o problema dos cursos superiores, também chamados de universitários, que hoje são basicamente profissionalizantes, específicos e limitados a um dado ofício. A exigência de habilitar o diplomado ao exercício profissional impôs à educação universitária a limitação do número de disciplinas e os currículos passaram a se concentrar nos temas ligados à profissão, sem fornecer conhecimentos gerais de comunicação verbal e escrita, domínio da matemática, raciocínio lógico, pensamento analítico e cultura social.

Às vezes, a distância entre o conhecimento técnico especializado e os conhecimentos de outras áreas é tão grande que reduz o profissional a ser estreito e inapto, por exemplo, para cargos de liderança. O excesso de especialização edificou um mundo de técnicos quase analfabetos funcionais em temas importantes para a vida, como sociologia, psicologia, direito, economia, política etc.

Essa situação levou a uma espécie de crise da epistemologia, que á a teoria do conhecimento, ou seja, como o conhecimento é pesquisado, obtido e sistematizado. A formação superior universitária gera multidões de profissionais com conhecimento técnico específico, porém com fraca formação universal. A palavra “universitário” vem da ideia de conhecimentos sobre as várias áreas da existência humana.

Além disso, o Brasil foi além e piorou o quadro, ao criar os Cursos Superiores de Tecnologia (também conhecidos como “tecnólogos”), que são cursos focados em aplicação prática sem preocupação com teorias e conhecimentos científicos, em geral feitos em um ano e meio ou dois anos. A esses cursos foi concedido o grau de cursos universitários, com todos os direitos que estes contêm.

Um aluno que faça um “tecnólogo” de dois anos – por exemplo, curso de Fotografia, Jogos Digitais, Marketing Digital, Gestão Comercial etc. – tem diploma universitário e está autorizado a ir para um mestrado ou doutorado. Esses cursos são bons e necessários, mas faltou regulação eficiente. A solução dada pela Colômbia foi mais adequada, com a separação de status e prerrogativas dos Cursos Superiores Tecnológicos e dos Cursos Superiores Universitários.

Os cursos universitários, segundo o critério da Colômbia, são exigidos para o ingresso em mestrados e doutorados, por terem carga horária maior e teorias científicas e conhecimentos de outras áreas, além da mera técnica da profissão que o curso habilita. Já os “tecnólogos” satisfazem as necessidades do mercado de trabalho, são considerados superiores porque feitos após a conclusão do ensino médio, mas não têm o status de cursos universitários.

De qualquer forma, o destaque que quero deixar aqui é a constatação que o excesso de especialização resultou em crise da epistemologia pela falta de formação clássica, teorias científicas, alta cultura e estudo de ciências humanas e sociais.
 
BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

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