BLOG ORLANDO TAMBOSI
Ives Gandra Martins vê com preocupação a interferência do Judiciário no debate político brasileiro. Entrevista a Paula Leal, da Oeste:
Dentro
do avião, os passageiros estavam acomodados à espera da decolagem.
Chega a comissária de bordo entrelaçada com um cidadão bem-vestido e que
usava óculos escuros. O viajante curioso, sentado à primeira fileira,
pergunta: “Quem é esse homem?”. “É o piloto”, diz a comissária. “Mas por
que os óculos escuros?”, questiona o passageiro. “Ele é cego. Mas fique
tranquilo. Ele é o melhor piloto da nossa companhia aérea”. Dali a
pouco, chega o copiloto, também de óculos escuros. O passageiro, já
desesperado, pergunta novamente quem é o homem. A comissária responde:
“É o copiloto. Ele também é cego, mas é o melhor profissional que temos
na empresa”. O pânico se espalha pela aeronave. Com as portas travadas, o
avião taxia até a cabeceira da pista e liga os motores. A aeronave
começa a tomar velocidade. Os passageiros, apavorados, olham pela janela
e percebem que ainda não saíram do chão. Quando o avião chega ao fim da
pista, começa a gritaria. De repente, a aeronave levanta voo
serenamente. Dentro da cabine, o comandante vira para o copiloto e diz:
“No dia em que eles não gritarem, não sei o que será de nós”.
Com
essa piada, repleta de simbologia dos tempos atuais, o jurista Ives
Gandra Martins encerrou o discurso de abertura em um evento no Conselho
Superior de Direito, na quarta-feira 19, na cidade de São Paulo. E
emendou: “Nós temos de gritar por um país melhor”.
Gandra
Martins é uma das raras vozes do campo do Direito a se manifestar
contra os abusos praticados por ministros das Cortes Superiores do país.
Aos 87 anos de idade, o jurista e professor emérito da Faculdade de
Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie participou durante 20
meses das discussões da Assembleia Constituinte. Conhece como poucos os
meandros da elaboração da Constituição Federal de 1988. Talvez por isso
sua decepção com a atuação dos ministros seja tão aguda e contumaz.
Gandra Martins lembra que até mesmo durante o período militar, quando o
jurista foi perseguido, havia independência e respeito entre os Poderes.
“Nunca
vi o Poder Judiciário interferir tão diretamente no processo político a
favor de uma corrente ideológica como hoje”, diz o advogado, que
recebeu a reportagem de Oeste em seu escritório, no bairro do Jardim
Paulista. Em meio a livros, múltiplas homenagens decorando as paredes
revestidas de madeira escura, porta-retratos com recordações pessoais
(em especial da mulher, dona Ruth, que morreu de covid-19, em 2021) o
jurista vai todas as tardes ao escritório para renovar sua paixão pela
advocacia. Já são 64 anos de profissão.
Ives
Gandra Martins é guardião de memórias que merecem, sempre, ser
reativadas. Mais ainda nos tempos atuais, em que o Supremo Tribunal
Federal se transformou num poder político, e partidos de esquerda querem
o cerceamento da liberdade de expressão e de imprensa no país. O PT
chegou a pedir o bloqueio do site da Revista Oeste, entre outros portais
de notícias, até o encerramento das eleições.
O
jurista criticou a interferência do Judiciário em outros Poderes e vê
com preocupação o debate eleitoral mediado pela Justiça. O advogado
reforçou que, numa democracia, a liberdade de imprensa deve ser
preservada, conforme garante a Carta Cidadã. E condenou a censura.
A conversa com o jurista, de pouco mais de meia hora, reforça a certeza de que a gritaria não pode parar.
Independência do Poder Judiciário
Durante
o período militar, sofri uma ação pesada do então ministro Delfim Neto,
que pediu o confisco dos meus bens e a abertura de um IPM [inquérito
policial militar] contra mim. Foi notícia em todos os jornais da época. O
fato ocorreu em 13 de fevereiro de 1969, dois meses depois do Ato
Institucional nº 5. Eu era advogado da Sudan, e eles acusavam a Sudan de
ser sonegadora. Eles entenderam que os honorários advocatícios que eu
tinha declarado no meu Imposto de Renda [IR] só poderiam ter sido
produto do crime, da sonegação. Veja, fui investigado por honorários
advocatícios declarados no meu IR, numa época em que poucos advogados
declaravam o que ganhavam. Conto essa história porque, dois anos depois,
como advogado, ganhei uma causa no Supremo Tribunal Federal, por 5
votos a 3. Apesar da abertura de um IPM contra mim, continuei advogando.
Isso mostra a independência do Poder Judiciário à época, que não
interferia e não aceitava intervenção do sistema militar.
Recorte do jornal O Estado de S. Paulo, 14/2/1969
Debate eleitoral mediado pelo Judiciário
Nunca
vi o Poder Judiciário interferir tão diretamente no processo político a
favor de uma corrente ideológica como hoje. A Rede, partido do senador
Randolfe Rodrigues, não faz outra coisa a não ser protocolar ações no
STF. Vejo com muita preocupação o que está acontecendo no Brasil. Porque
há uma intenção deliberada de não permitir que Bolsonaro seja reeleito.
E por essa razão estão unidas a imprensa, a oposição que apoia Lula, e a
Justiça decididamente tomou partido.
Invasão de competências
O
Poder Judiciário tem avançado o sinal na invasão de competência.
Durante minha trajetória jurídica, aprendi que uma democracia só se
sustenta se há respeito à Constituição, e não por vontade de um
magistrado de mudá-la. Trabalhamos 20 meses para elaborar uma nova
Constituição, e o que vemos hoje é uma distorção profunda do que foi
proposto. O aspecto mais importante dos debates da Constituinte foi que
tivéssemos a representação popular como o poder soberano. Quem pode
representar a democracia no Brasil é o povo. E o povo é representado
fundamentalmente por dois Poderes — o Legislativo e o Executivo. O
Judiciário é Poder representativo de uma lei que não elabora, quem faz
são os outros Poderes, e sua função é fazer com que essa lei seja
cumprida.
Orientação ideológica no STF
Sete
ministros do STF foram indicados pelo PT. Respeito os ministros, eles
são competentes, tenho livros publicados com todos, não coloco em dúvida
a honestidade deles. Mas o problema é que eles têm preferência por um
candidato. Hoje, temos praticamente metade da nação ou conservadora ou
de esquerda. Há uma nítida preferência de que os conservadores têm de
ser afastados, como se metade da população, mais de 100 milhões de
brasileiros, não devesse ter voz porque 11 cidadãos entendem que 100
milhões de brasileiros não valem nada e representam um pensamento não
democrático. Os ministros estão convencidos de que cabe ao Poder
Judiciário definir o que é melhor para o país.
Liberdade de imprensa
No
momento em que órgãos de imprensa são proibidos de se manifestar no
período pré-eleitoral, em que se pode dizer ‘não publique essa notícia’,
ainda mais por antecipação, e retirar, inclusive, o aspecto financeiro
de alguns veículos, como ocorreu no caso da Brasil Paralelo [a produtora
foi proibida de veicular o documentário Quem Mandou Matar Jair
Bolsonaro? e seu canal no YouTube foi desmonetizado], isto é censura. O
artigo 220 da Constituição Federal fala da liberdade absoluta de
comunicação. Quando vemos o Judiciário inclinado a impedir mais de 40
perfis nas redes sociais de se manifestarem sobre qualquer candidato até
o fim das eleições, alegando que isso é contra a democracia, é
preocupante. Sete cidadãos do TSE dizem o que é e o que não é
democracia, pessoas que não foram eleitas pelo povo. Tenho a impressão
de que vivemos um momento terrível para a democracia brasileira.
Fato ou fake?
Estamos
numa campanha eleitoral em que temos de conhecer todos os aspectos.
Lula apoiou Daniel Ortega [ditador da Nicarágua]. É verdade. Se uma
notícia é falsa, pode retirar aquela notícia em específico, mas não
impedir, por antecipação, que se possa falar sobre o assunto. Isto nunca
vi, com 87 anos e 64 de advocacia, mesmo no período militar, quando fui
perseguido. Sempre disse o que pensava. Advogado tem de ter a coragem
para dizer, nos piores momentos, aquilo que lhe parece certo.
Silêncio dos advogados
Eu,
que sou um velho professor e um velho advogado, deveria ficar calado.
Mas digo no meu decálogo [dez preceitos que Ives entregava aos alunos
enquanto professor de Direito] que é neste momento que nós, advogados,
não podemos ficar calados. Temos de dizer, com respeito, que o que os
ministros fazem não é bom para a democracia no Brasil. A maior parte dos
advogados tem receio de se indispor com os Tribunais Superiores, tem
medo de se manifestar. A Ordem dos Advogados do Brasil, que teria de
defender a prerrogativa do direito de livre expressão, parece estar
apavorada. O pessoal da Brasil Paralelo está com dificuldade para
encontrar um advogado que aceite defendê-los. Estamos observando um
silêncio. E pior. Os ministros estão amedrontando o cidadão normal a se
manifestar. Qualquer coisa que se diga hoje pode levar a uma prisão, uma
investigação, uma invasão da sua casa, uma paralisação de contas. Nunca
vi isso no país.
Futuro do Brasil
Estou
preocupado pelo Brasil, pela estabilidade das instituições, pela
democracia. Observamos hoje uma imposição de um dos Poderes, que se
considera dono do Direito e dono da democracia. Essa situação me causa
desconforto, porque o conceito de democracia está sendo dado por eles, e
não pelo povo, que é o verdadeiro poder soberano, segundo a
Constituição Federal. Hoje, a democracia é o que os ministros permitem.
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