sábado, 29 de outubro de 2022

Aos meus amigos que vão anular

 



Eu entendo o argumento de não querer dar o seu apoio formal a nenhum candidato que se detesta. Tenho que votar entre Mao e Pol Pot — o que faço? A crônica de Alexandre Soares Silva para a Crusoé:


Ok, vá lá. Já que é o único assunto agora, vamos falar das eleições.

(Com esse início acho que consegui o seguinte: 1) parecer pairar mentalmente acima das eleições, apesar de ser eu mesmo que estou tocando no assunto das eleições, e 2) Dar a entender que me imploraram para falar das eleições. Vitória retórica completa.)

Hoje me deu vontade de defender os, na falta de outros termos, isentões, anulões e branqueadores de voto. Cá entre nós preferia que houvesse outro termo além de isentões, que me parece um pouco gasto por ser usado geralmente por pessoas de QI um tanto baixo. Mas não me ocorre nenhum outro, então vamos em frente.

Fico me perguntando às vezes o motivo da animosidade contra eles.

Há o fato de que eles estão declarando, durante uma guerra entre duas tribos, que não pertencem a nenhuma das duas e querem que as duas se explodam.

No caso de uma guerra real, com riscos reais, isso seria admirável. Mas no caso da guerra metafórica das eleições, há a percepcção dos dois lados de que essa tribo não está correndo risco nenhum, ao mesmo tempo em que se diz “atacada pelos dois lados”.

Mas eles correm algum risco mesmo? Bom, sim, todos nós corremos algum risco. O bolsonarista corre algum risco se trabalhar, por exemplo, numa editora, produtora de cinema, qualquer coisa ligada à cultura ou até muito às margens da cultura, como a publicidade; o petista corre algum risco se trabalhar numa empresa normal, com gente normal; o isentão se trabalhar no meio de um grupo de não-isentões um pouco mais tribais.

Mas de fato há algo um tanto irritante na insistência por parte dos isentões de que a posição deles é heroica. Essa insistência seria irritante mesmo no caso de posições heroicas de fato. Um bombeiro que tivesse salvado um orfanato inteiro de um incêndio ficaria irritante se todo dia postasse que é um herói. Se amem um pouco menos, meus amigos nem-à-esquerda-nem-à-direita. Às vezes até eu tenho vontade de lhes dar um catiripapo.

Também há a percepção, dos dois lados, de que o isentão na verdade está escondendo uma aliança com o outro lado. Isso deve ser verdade em alguns casos. Talvez muitos. Mas alguém pode achar que isso é verdade em todos os casos? Não — o isentão real, o isentão abstrato, o isentão no vácuo, tem algo de admirável.

E eu entendo o argumento de não querer dar o seu apoio formal a nenhum candidato que se detesta. Tenho que votar entre Mao e Pol Pot — o que faço? Me isolo durante dois anos para decidir quem é o menos pior? E se a pessoa não enxergar diferença nenhuma, por mais que tentem convencê-la de uma diferença aqui e acolá?

Se a pessoa de fato vê a escolha que tem que fazer como sendo entre algo horrível e algo igualmente horrível, é óbvio que ela não precisa escolher. É legítimo. Ela está certa em não querer votar, ou em querer anular, ou o que seja.

Não ouça os chatos. Anule mesmo. Anule com força.

O problema — bom vou dizer qual é o problema de fato. O problema é que essa pessoa muitas vezes assume que, se você acha um candidato menos pior, você adora esse candidato. Você é um completo imbecil que não vê os defeitos desse candidato. Não. Olha, vou fazer uma imagem um tanto nojenta, mas é a realidade.

Estamos todos trancados numa cadeia, para sempre. Ok? O carcereiro chega e diz:

—Hora do almoço. Vocês podem escolher entre dois pratos: sopa de água de banho com couve-flor ou tartine de muco e azeitonas. Mas o prato que vocês escolherem vai ser a única coisa que a gente vai servir durante quatro anos. Escolham bem. Não pode mudar depois.

Meu companheiro de cela se vira pra mim e diz:

—Não consigo escolher! São igualmente horríveis! Meu Deus! Escolhe você!

Anda de um lado pro outro pela cela, aflito.

Bom, tento imaginar o que é menos horrível.

— Água do banho de quem? – pergunto.

— Dos carcereiros.

Penso um pouco.

— Muco de quem?

— Da professora de Filosofia Política e Estética da USP Marilena Chauí.

É difícil.

— A couve-flor da sopa pelo menos é normal? — pergunto.

O carcereiro checa no menu e diz:

— A couve-flor é marinada durante sete dias entre os dedos dos pés do cantor, compositor e percussionista brasileiro Otto.

Talvez seja uma escolha impossível. Mas se eu não escolher, alguém vai.

Cheio de dúvida, escolho a sopa de água de banho com couve-flor marinada nos dedos do Otto. Sei lá, parece um pouco menos pior, não? O guarda ri e vai embora.

E nos servem sopa de água de banho com couve-flor, no almoço e no jantar. E durante todos os próximos quatro anos, em todos os almoços e jantares, todos os dias, meu companheiro de cela olha pra mim e diz:

—Qual o problema? Está com ânsia, Alexandre? Mas você não adoraaaava sopa de água de banho? Você tinha que escolher sopa de água de banho? Não é evidente que sopa de água de banho não é legal? E agora, fala pra mim, está adorando a sopa de água de banho? Quer o meu prato também? Nãão, come tudo, não deixa sobrar nada não. Não foi você que escolheu?

É só isso que é irritante em vocês, meus amigos que anulam voto. Consertem isso, e volto a ser fã de vocês.

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