As militâncias políticas fanatizadas – à direita e à esquerda – não enxergam nada além de seus narizes ideológicos e o país sofre na miséria moral e física. Paulo Cruz para a Gazeta do Povo:
Sabe,
porém, isto: que nos últimos dias sobrevirão tempos trabalhosos. Porque
haverá homens amantes de si mesmos, avarentos, presunçosos, soberbos,
blasfemos, desobedientes a pais e mães, ingratos, profanos, sem afeto
natural, irreconciliáveis, caluniadores, incontinentes, cruéis, sem amor
para com os bons, traidores, obstinados, orgulhosos, mais amigos dos
deleites do que amigos de Deus, tendo aparência de piedade, mas negando a
eficácia dela. Destes afasta-te.” (2 Timóteo 3,1-5)
O
ano era 2003. Eu era voluntário numa missão que trabalhava com pessoas
encarceradas e em situação de rua. Durante um ano fui, com outros
voluntários, todos os sábados, à extinta Febem; violão no ombro e Bíblia
debaixo do braço para levar amor e consolo àqueles jovens já tão
massacrados pelas escolhas e pelas circunstâncias. Muitos voluntários e
missionários eram recuperados de drogas
e do crime, pessoas que haviam se convertido pelo trabalho da missão e
se juntavam a ela no afã de testemunharem a transformação pela qual
haviam passado. Pregavam nas igrejas e davam seus testemunhos, na maior
parte das vezes assustadores, a fim de evidenciarem que “onde abundou o
pecado, superabundou a graça” (Romanos 5,20).
Sempre
estranhei um pouco a superexposição de pessoas que haviam acabado de
sair de situações de extrema vulnerabilidade, e que, no meu entender – o
que se provou verdadeiro em alguns casos –, não estavam preparadas para
serem colocadas em púlpitos, diante de plateias que acabariam por
tentar-lhes o ego em resposta às suas histórias chocantes e comoventes.
Lembro-me de um que, recém-saído da extinta Casa de Detenção, dizia, nos
púlpitos, como parte de seu testemunho, em meio a “glórias a Deus” e
“aleluias”, algo como – parafraseio, pois não lembro exatamente suas
palavras – “matei 20 pessoas, mas Deus foi misericordioso e me deu 20
louvores”. A exultação era geral. Anos depois fiquei sabendo que ele
havia voltado para a prisão.
Quem não lembra do falso Guina – personagem fictício da música Tô ouvindo alguém me chamar, do Racionais MCs –, que vivia pelas igrejas
a dar seu testemunho de ex-criminoso amigo do mais importante grupo de
rap do Brasil e ganhando dinheiro com a boa fé dos irmãos? Um dos
membros do Racionais foi atrás dele num culto, mas não adiantou, o estelionatário continuou enganando os fiéis com a anuência das igrejas. Isso porque as igrejas evangélicas
pentecostais sempre foram celeiros desse tipo de sensacionalismo
pseudoespiritual. Fora as teorias conspiratórias: chip da besta, Nova
Ordem Mundial, Illuminatis, Maçonaria e toda sorte de imbróglios
secretos sempre povoaram os púlpitos e sermões. Os testemunhos, muitas
vezes escabrosos como os descritos acima e piores, eram (e são ainda) o
prato principal de muitas igrejas, é uma cultura sedimentada.
Por
isso, quando as pessoas da igreja Assembleia de Deus Ministério Fama,
em Goiânia, ouviram os relatos absolutamente desconcertantes da
ex-ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves, sobre supostos casos de práticas sexuais grotescas com crianças,
na Ilha de Marajó, afirmando ter visto vídeos e fotos de bebês, com
meses de vida, que haviam sido violentamente estupradas, ninguém rasgou as vestes
diante de tamanha atrocidade, pois essa nem era a intenção da senadora
eleita. Por isso nenhum pai ou mãe se constrangeu por seus filhos
pequenos – que aparecem no vídeo – ouvirem aquelas atrocidades; a igreja
normalizou tais relatos. E tem mais: na sequência, ela disse: “Bolsonaro
disse: ʻnós vamos atrás de todas elasʼ, e o inferno se levantou contra
esse homem”. E completou: “A guerra contra Bolsonaro que a imprensa
levantou, que o Supremo levantou, que o Congresso levantou, acreditem,
não é uma guerra política, é uma guerra espiritual”. Ou seja, ela estava
ali em campanha política, como senadora eleita e como ex-ministra dos
Direitos Humanos, e aqueles supostos relatos serviram única e
exclusivamente para chamar a atenção dos fiéis para a luta do messias,
candidato à reeleição, contra as hostes malignas.
Damares,
para todos os efeitos, deu um testemunho como qualquer outro, como deve
fazer desde sempre dentro das igrejas, como muitos outros também o
fazem, compartilham e espiritualizam atrocidades a fim de comover sua
audiência. Por isso não sentiu necessidade de sustentar suas acusações,
como representante de um dos três poderes da República e ex-ministra de
Direitos Humanos, com provas. Por isso, ao ser questionada pelo
Ministério Público a provar as seríssimas acusações que fez, ela
simplesmente respondeu:
“o que eu falo no meu vídeo são as conversas que eu tenho com o povo na
rua. Eu não tenho acesso, os dados são sigilosos”. Ou seja, os vídeos e
fotos que ela diz ter visto se tornaram, magicamente, “conversas com o
povo”, pois “os dados são sigilosos”. Ou seja: mentiu como o falso
Guina. E quem defende essa atitude em nome do denuncismo inconsequente,
com a desculpa de que os casos são amplamente conhecidos, vira as costas
às leis e à institucionalidade para ser conivente com a mentira; desse
modo, se iguala aos “feiticeiros, os que se prostituem, os homicidas e
os idólatras” de Apocalipse 22,15.
Dias
atrás, outro fato no mínimo curioso foi percebido numa entrevista que o
candidato à reeleição deu a um podcast. Em determinado momento, em que
ele estava falando sobre o perigo de o Brasil virar uma Venezuela
– o bom e velho pânico moral –, ele disse: “Parei a moto numa esquina,
tirei o capacete e olhei umas menininhas, três, quatro, bonitas; de 14,
15 anos, arrumadinhas num sábado numa comunidade. E vi que eram meio
parecidas. Pintou um clima, voltei, ‘posso entrar na tua casa?’ Entrei.
Tinha umas 15, 20 meninas, [num] sábado de manhã, se arrumando – todas
venezuelanas. E eu pergunto: meninas bonitinhas, 14, 15 anos se
arrumando num sábado para quê? Ganhar a vida”.
A
campanha petista, que resolveu entrar no jogo sujo das narrativas de
redes sociais, focou no “pintou um clima” para espalhar uma hashtag
acusando o candidato de pedófilo. No entanto, para mim, muito, muito
pior foi a falsa acusação de prostituição infantil feita a menores
estrangeiras a quem o país que ele preside ofereceu asilo; fora a
flagrante prevaricação. Mas a coisa piora, pois um vídeo da visita
começou a circular por meio de bolsonaristas, a fim de mostrar que a
verdadeira intenção do motoqueiro havia sido conversar com as mulheres
que habitavam na casa. Ele entrou, conversou, abriu a geladeira,
perguntou como era na Venezuela e pregou o seu habitual pânico
anticomunista. No entanto, as “menininhas arrumadinhas” que ele acusou
de prostituição estavam, naquele momento, recebendo um tratamento de
beleza como parte de um projeto social:
“uma cabeleireira e oito pessoas de sua equipe cortavam cabelo, faziam
escova, prancha e babyliss em um grupo de mulheres venezuelanas”. A
cabeleireira ainda esclareceu a um portal de notícias: “Nós falamos para
ele: ʻolha, Bolsonaro, aqui é um evento, eu trouxe as minhas alunas
para um treinamento aqui e as meninas estão ficando bonitasʼ”. Ou seja,
indignado leitor, o candidato mentiu, mas não só: inventou uma história
de prostituição infantil, que ele repetiu em outros lugares, e acusou crianças refugiadas de fazer programa em seu país. Se isso não é crime, não sei o que é.
Para
os dois casos, não faltaram explicações da militância bolsonarista – e
xingamentos a quem se recusou a aceitá-las –, não minimizando o
problema, mas considerando tudo absolutamente normal e correto. São duas
pessoas de Deus lutando pelo país. Por isso, a palavra que não me sai
da mente ao refletir sobre isso é grotesco. Estamos em plena
normalização do grotesco. E aqui empresto a definição do germanista
Wolfgang Kayser, em sua análise do fenômeno na arte, para dizer que o
grotesco é “algo angustiante e sinistro em face de um mundo em que as
ordenações de nossa realidade estavam [estão] suspensas”.
A
mim está claro, atento leitor: um país formado, nas últimas décadas, à
base de Banheira do Gugu, Pânico na TV, crianças dançando na boquinha da
garrafa, programas de jornalismo policial sensacionalista às 5 da tarde
– como diz meu amigo Alê Santos, “café da tarde com violência” –, CQC,
SuperPop, Ratinho e muitos outros, sem qualquer filtro cultural ou moral sólido; um país que elegeu o Tiririca
quatro vezes e vem elegendo Jair Bolsonaro há 30 anos não pode estar
bem. Um país que prende um político por corrupção para depois soltá-lo e
vê-lo liderar as pesquisas de intenção de voto não pode estar bem.
Some-se
a isso uma igreja evangélica que vem crescendo exponencialmente não à
base de sólidos fundamentos da fé cristã – e falo como um evangélico que
há mais de 20 anos critica esse fenômeno –, mas de heresias toscas e
pseudoespirituais como as “teologias” da confissão positiva e da
prosperidade, e os famigerados seminários de batalha espiritual, que
investem pesado não em conhecimento, mas em sujeição emocional. Tudo
isso conduzido por líderes incapazes e, muitas vezes, inescrupulosos –
como falei no artigo da semana passada. Uma igreja absolutamente entregue ao deus deste século.
Tudo
isso nos leva a um desprezo total pela institucionalidade, pelo decoro,
pela moral privada e pública, pelo ornamento legal, pelas virtudes;
enfim, um desprezo pela ordem. Não há mais julgamentos realizados de
acordo com a realidade. O brasileiro está vivendo na Segunda Realidade,
e não só é incapaz de discernir os fenômenos e os tempos, mas se recusa
a fazê-lo. Estamos, todos, acometidos das seis doenças do espírito
contemporâneo das quais nos falava o imenso Constantin Noica. As militâncias políticas fanatizadas – à direita e à esquerda – não enxergam nada além de seus narizes ideológicos e o país sofre na miséria moral e física.
Como cristão mantenho minha esperança em Deus, mas que tem horas que gente desanima, isso tem.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário