Sou otimista. Desde que não haja golpe militar, algo verdadeiramente improvável, a democracia não terminará de um dia para o outro. Quando perecem, as democracias fazem-no lentamente. Artigo de Mafalda Pratas para o Observador:
No
domingo, o Brasil irá a votos para decidir, numa segunda volta
extremamente renhida e imprevisível, quem será o próximo presidente.
Esta eleição fica marcada pela polarização entre as figuras peculiares
dos dois candidatos: Lula da Silva e Jair Bolsonaro.
De
um lado, Lula da Silva é um político experiente, que, desde a
democratização, desempenha um papel político central na vida do país. Na
sua sexta candidatura presidencial, joga como bandeira os seus dois
mandatos, durante os quais seguiu uma política pragmática, com
crescimento económico e uma redução histórica da pobreza. É certo que os
feitos de Lula se devem, em grande medida, ao clima mundial de boom dos
preços das matérias-primas e pela estabilização monetária conseguida
durante os mandatos de Fernando Henrique Cardoso. O seu legado, contudo,
é importante e continua presente na mente de muitos Brasileiros. Contra
si, tem todos os casos de corrupção nos quais o PT, os seus
companheiros e até o próprio se viram envolvidos durante os seus
mandatos. No Brasil, quase ninguém é indiferente a Lula, nem à sua
prisão.
Do
outro lado, Jair Bolsonaro, um ex-militar que foi um político mais ou
menos falhado durante quase toda a sua carreira. Em 2018, agitou a
direita Brasileira, com o seu estilo estonteante e o radicalismo das
suas ideias, conseguindo ultrapassar o histórico PSDB, partido de
centro-direita que, pela primeira vez, não disputou uma segunda volta
presidencial.
Ambas as figuras suscitam ódios e paixões. Num país em que a principal clivagem política é entre petismo e antipetismo,
uma candidatura de Lula como única opção à esquerda causa mobilização
de uns e repulsa de outros. Ante esta acentuada polarização ouvimos
frequentemente a pergunta: estará a democracia em risco no Brasil? Esta
pergunta não se confina unicamente ao Brasil. Ela é repetida com
frequência, relativamente a vários contextos e países. A democracia está
em risco na Hungria? E na Polónia? E nos EUA? A ideia por detrás da
pergunta é a seguinte: num país mais polarizado, os lados que competem
em eleições tornam-se mais distantes entre si, o que aumenta não só o
custo do compromisso político, mas também o custo de deixar o adversário
governar. Se realmente consideramos o projecto político adversário
repugnante ou ameaçador, estamos dispostos a fazer (quase) tudo para que
ele não seja executado. Se consideramos os nossos adversários
perigosos, o risco de lhes dar o poder é quase existencial. Neste
contexto, cada lado fica então disposto a tolerar atropelos à democracia e às regras do jogo para garantir uma vitória da sua facção e a derrota do adversário.
Uma
resposta séria às perguntas sobre os riscos da democracia exige
primeiro esclarecer o que é a democracia. Este é um tema complexo e de
respostas difíceis. A democracia não está em risco sempre que os nossos
candidatos preferidos perdem, nem mesmo quando aqueles que odiamos
ganham eleições. A democracia não é um lugar utópico, onde cada um
deposita os seus valores e ideais preferidos. Mesmo que esta afirmação
choque, é necessário dizê-lo: a democracia não é sinónimo de justiça
social, igualdade, segurança, prosperidade ou tolerância. Todos esses
ideais são preciosos e dignos de serem defendidos convictamente, mas são
conceptualmente distintos do regime de democracia representativa que
utilizamos para escolher aqueles que nos governam. Ao colocarmos todos
os nossos valores no altar da democracia, arriscamo-nos a não perceber a
importância dos mecanismos democráticos e as suas limitações.
Arriscamo-nos também a não perceber o que se passa à nossa volta.
Assim,
proponho e desafio os leitores a considerarem uma descrição mais
rigorosa, e porventura mais arrojada, do regime em que vivem. Na senda
de concepções minimalistas temperadas
pelo liberalismo, a democracia representativa é apenas, e só, a
escolha, através de um processo eleitoral livre e justo, onde todos os
cidadãos podem participar, de quem nos representa e quem nos governa,
independentemente da ideologia ou programa político dos vencedores. A
democracia é, numa formulação engenhosa de Adam Przeworski, um regime
onde partidos e pessoas que estão no poder podem perder – e, de facto,
perdem — eleições, saindo voluntariamente do lugar que ocupam. Note-se
que um país que satisfaça esta definição, aparentemente minimalista, tem
já muita coisa: um processo eleitoral livre e justo, sufrágio
universal, a existência e garantia de liberdades individuais básicas
(nomeadamente, expressão e associação) e um limiar mínimo de direitos
políticos para toda a população. Por sua vez, a execução prática de tudo
isto requer um aparelho de estado funcional. A existência da
possibilidade de quem está no poder sair daí a 4 ou 5 anos – isto é, a
verdadeira incerteza quanto à próxima eleição – também nos garante mais
do que aquilo que à partida possa parecer. É quando essa incerteza se
esvai, ou quando o processo ficou viciado, que a democracia
representativa realmente começou a morrer. Se a incerteza se mantém e a
vitória de quem está no poder não está garantida, as suas acções serão
necessariamente muito mais contidas e sempre susceptíveis de serem
revertidas assim que outro se sente na cadeira.
Assim
que propomos esta definição, logo vem uma crítica habitual: e se os
vencedores quiserem atacar e diminuir os direitos fundamentais das
minorias perdedoras? A crítica, embora habitual, mesmo entre
intelectuais reputados, é mais falaciosa do que possa parecer à partida.
Desde logo, porque as ferramentas à disposição de uma maioria tirânica
para atacar uma minoria sem capacidade de se defender, também podem ser
utilizadas – e até de forma mais fácil – por uma igualmente possível
minoria tirânica, criada automaticamente por qualquer instituição
contra-maioritária. Concretizando, não é automático que dar poder de
veto a 11 juízes produza decisões mais respeitadoras dos direitos
individuais do que dar esse poder de decisão a 50% da legislatura. Os 11
juízes não deixam de ser uma minoria que também pode abusar do seu
poder contra outras minorias ou mesmo contra maiorias numéricas. E os 11
juízes são nomeados por alguém, certamente não por intervenção divina.
Para
além disso, esta crítica é frequentemente utilizada de forma demasiado
superficial. Sim, é possível uma maioria vencedora atacar os direitos de
minorias perdedoras e devemos estar atentos a esse perigo. No entanto, o
que fere realmente a democracia não são palavras, discursos ou
ideologias, mas sim acções concretas de quem ocupa cargos com poder.
Assim, não é credível, correcto, nem avisado gritar logo pela tirania
dos vencedores contra minorias perdedoras “apenas” porque ouvimos
discursos repugnantes, um estilo ignóbil ou ideias pouco democráticas.
Apenas quando essas ideias ou palavras se convertem em ações é que
podemos começar a falar em feridas graves à democracia. As palavras
ferem, mas ferem menos do que uma acção. É esse um dos grandes alicerces
do liberalismo moderno e do modo pacífico de processar e resolver
conflitos em estados democráticos.
Ainda
assim, e dadas as experiências históricas na falibilidade do julgamento
humano, os Estados modernos decidiram jogar pelo seguro e instituir um
estado de Direito, explicitando um conjunto de regras invioláveis e uma
teia de responsabilidades mútuas que dificulte a vida a maiorias simples
que se queiram exceder (overreach). Nos últimos anos, vários analistas
chegaram à conclusão que as democracias frequentemente perecem através
desses excessos do poder executivo, através de acções governativas e em
passos mais discretos. Não em actos aparatosos, como um general a entrar
com tanques num palácio presidencial, seguindo-se da tradicional
mensagem-vídeo revolucionária ou reaccionária. Na verdade, se no século
passado, os golpes militares eram utilizados com relativa frequência
para contestar ou reverter resultados eleitorais, hoje estes são
raríssimos. A grande maioria das democracias definha, hoje, por aquilo a
que se chama “executive takeover”: literalmente, quando o poder
executivo se estica para lá do seu mandato e das suas limitações
institucionais e tenta dominar outros núcleos de poder para se
eternizar.
Svolik (2020)
Tudo
isto para nos perguntarmos: a democracia – assim concebida e definida –
está em risco no Brasil? Um golpe militar, como em 1964, é sem dúvida
muito improvável. Embora Bolsonaro tenha cultivado relações demasiados
próximas com o sector militar, levando inclusive especialistas
a escreverem sobre os perigos da militarização da democracia
Brasileira, não deixa de ser muito difícil – e requerer muitos apoios —
executar com sucesso um golpe militar tradicional numa democracia como a
Brasileira. Para além disso, os estudos existentes demonstram ser
extremamente improvável que um regime democrático morra quando já
experienciou, com sucesso, tantas eleições justas e democráticas como o
Brasil (oito), tantas rotações de poder entre indivíduos distintos
(seis), inclusive entre quadrantes políticos distintos. Trinta e quatro
anos de experiência democrática não desaparecem em dois dias.
A
Hungria, porém, poderá estar nas cabeças de muitos leitores e
observadores. Lembremo-nos, no entanto, que grande parte dos atropelos
que Orban deu às instituições democráticas no seu país apenas foram
possíveis porque, no seu primeiro mandato após eleição em 2010, o seu
partido conseguiu obter uma supermaioria de dois terços, que permitiu
que alterasse a constituição húngara unilateralmente.
Qualquer
que seja o resultado no próximo domingo, sabemos que o Congresso
Brasileiro – sem o qual o Presidente não consegue governar – é um dos
mais fragmentados do mundo. Embora o número de partidos legislativos
tenha diminuído nestas eleições, o Congresso Brasileiro continua a ser
hiper-fragmentado, em comparação com outros países, com um número
efectivo de partidos a rondar os 9. A bancada do partido de Bolsonaro,
sendo a maior, tem apenas 99 congressistas em 513 lugares da Câmara dos
Deputados, necessitando de muitos congressistas de vários partidos do
chamado “Centrão”
para governar. Assim, se Bolsonaro tentar atropelar a democracia, por
exemplo tentando encher o judiciário e o Supremo Tribunal Federal de
juízes de elementos próximos de si, só será bem-sucedido se tiver a
ajuda de muitos outros sectores e indivíduos noutros loci de poder. Se a
democracia Brasileira perecer, os assassinos serão muitos mais que
apenas os Bolsonaristas.
Note-se
que, se eleito, Lula também terá de liderar com este Congresso
hiper-fragmentado. Para governar, terá a vida ainda mais dificultada que
Bolsonaro, na medida em que a direita e o centro dominaram as eleições
legislativas de há quatro semanas. Esperemos que, neste caso, a
corrupção não seja uma opção. Note-se ainda outro risco: se Lula não
conseguir apoios suficientes no Congresso para alguma estabilidade
governativa e se a tensão com a direita permanecer elevada, um
impeachment de Lula tornar-se-á altamente provável, especialmente
considerando que o seu candidato vice-presidencial é Geraldo Alckmin, um
histórico do partido de centro-direita PSDB. Uma democracia com
impeachments frequentes ou em que um presidente sistematicamente não
consegue governar com o poder legislativo fica também em risco de chegar a momentos de deadlock, em que soluções extrainstitucionais se tornam apelativas.
Outro
perigo que tem sido recorrentemente aventado é a existência de um
episódio como o 6 de Janeiro nos EUA, em que vários apoiantes do
derrotado “invadem” o Congresso ou outra alta instituição Brasileira. A
meu ver, não é impossível. Especialmente se a margem do vencedor for
inferior a um milhão de votos. No entanto, é fundamental perceber o
número relativo de invasores e a reacção do resto da população e do ramo
militar-policial a esses eventos. Se forem acções isoladas (e não
incentivadas) por parte de um grupo de poucos milhares de lunáticos, a
democracia não estará em risco. Pelo contrário, se estas forem
sustentadas por vários indivíduos em posições de poder ou se obtiverem
uma resposta do lado oposto nas ruas, a situação poder-se-á complicar.
Normalmente, os estados de emergência ou potenciais intervenções
policiais e militares em processos eleitorais não são conducentes a
desenvolvimentos positivos na democracia.
Tal como o politólogo Carlos Pereira, também não tenho nenhuma bola de cristal e acredito que a experiência democrática Brasileira é preciosa. Como Fernando Bizzarro,
também reconheço que Bolsonaro e os Bolsonaristas, caso percam, não
queiram esperar quatro anos de um governo petista e poderão ver a
contestação das eleições como uma forma, se não de ganhar o poder, pelo
menos de melhorar a sua posição negocial. No entanto, sou optimista.
Desde que não haja golpe militar, algo verdadeiramente improvável, a
democracia não terminará de um dia para o outro. Quando perecem, as
democracias fazem-no lentamente. Mas, ao mesmo tempo, as democracias
ganham tempo. E, nesse caso, mesmo que doentes, é perfeitamente possível
recuperá-las.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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