sexta-feira, 30 de setembro de 2022

Elizabeth II: muito além das limitações burocráticas da vida.

 



Sem dúvida ter vivido durante a guerra ajudou, assim como o fato de seu pai, o rei George IV (que Elizabeth venerava), ter se recusado a tirar as duas filhas do país por uma questão de segurança. Theodore Dalrymple para a revista Oeste:


Vivi toda a minha vida adulta, assim como vivi a maior parte da minha infância, sob uma única chefe de Estado: a rainha Elizabeth II. Ela não foi democraticamente eleita nem foi uma tirana. O cidadão britânico médio tem muito mais medo de sua Câmara Municipal do que de seu monarca: a Câmara Municipal (eleita, claro) tem poder real de transformar a vida num inferno. Dos poderes do governo central (eleito democraticamente), quase não ouso falar, caso alguém de lá leia isto.

A finada rainha conseguiu um feito impressionante: ela se manteve popular por 70 anos. Claro, ajudou muito o fato de que ela não tinha poder de decisão político, portanto, não foi responsável pelas dificuldades nem pelos desastres que se abateram sobre o país durante seu reinado. Mesmo assim, não seria exatamente surpreendente, dado o respeito com que era tratada, se a rainha tivesse sido uma figura egocêntrica, mimada, petulante e desagradável, e não a pessoa modesta, com um sentimento de dever inabalável, que foi (e me apresso em acrescentar, com um senso de humor excelente). Esse foi um incrível sinal de caráter. Ela cumpriu uma obrigação oficial dois dias antes de sua morte, aos 96 anos, e sempre entendeu que não era importante como pessoa, e sim na função que foi conclamada a desempenhar.

Esta não é uma maneira muito moderna de ser no mundo. Ela foi maior que seus súditos, mas também menor: durante 70 anos, a rainha Elizabeth II nunca esteve livre de suas obrigações, nem por um minuto. Ela sabia que era alguém comum e, assim, conteve a tendência moderna (da qual não estou totalmente isento) da autoimportância. A maioria de nós não teria tanto autocontrole quanto ela teve por 70 minutos, quanto mais por 70 anos.


Seu funeral, que ocorreu no dia que escrevo este texto, foi muito diferente do da princesa Diana. O funeral de Diana foi dramático, emocionalmente kitsch e tão honesto e sincero quanto a estratégia de vendas de um comerciante de tapetes. Mas o da rainha foi um evento solene. Quando o arcebispo da Cantuária (um homem por quem não tenho muita admiração) afirmou que nenhum juramento foi tão bem cumprido quanto o feito por ela, aos 21 anos, há 75 anos, de dedicar a vida a servir, ele estava totalmente correto. Claro, suas condições de trabalho eram bastante boas, mas a boa sorte é um teste de caráter tanto quanto o azar.

Sem dúvida ter vivido durante a guerra ajudou, assim como o fato de seu pai, o rei George IV (que Elizabeth venerava), ter se recusado a tirar as duas filhas do país por uma questão de segurança. Ele e a esposa ficaram em Londres e se negaram a se mudar do palácio, apesar de terem sofrido mais de um bombardeio. A rainha, que na época era obviamente uma princesa, insistiu em servir nas Forças Armadas assim que pôde e fez treinamento de mecânica. Ela teve um exemplo muito bom no pai, claro, mas quantos de nós seguem os bons exemplos que nos dão? (Incidentalmente, um mau exemplo é um bom exemplo quando observado da maneira correta.)

A feiura e a banalidade

Bem, chega de falar da rainha: quilômetros quadrados de artigos foram escritos sobre ela, e não vou acrescentar nada original. Como não tenho um aparelho de TV (abri mão da televisão mais de 50 anos atrás), fui até a casa do vizinho para assistir ao funeral no seu televisor do tamanho de uma tela de cinema, e uma coisa me impressionou, à minha revelia: a beleza do centro de Londres, a nobreza de seus parques e edifícios, até que os prédios modernos ao fundo se tornassem visíveis no enquadramento da câmera, quando a pura incompetência, a feiura e a banalidade da arquitetura modernista e pós-modernista na Inglaterra não puderam mais ser ignoradas.

Também não é mais possível ignorá-las em outros lugares. Sempre que ando pela Rue de Rennes, em Paris, por exemplo, e vejo a Torre Montparnasse, penso: “Onde está a Al-Qaeda quando ela pode fazer algo de bom?” (imagino que, nesses dias de literalidade, seja necessário acrescentar que eu não desejo de fato que a Al-Qaeda jogue um avião contra ela, por mais que eu a abomine.)

Fila para visitar o caixão da rainha Elizabeth II, em Westminster Hall, Londres (14 de setembro 2022)

Se você perguntar a um arquiteto por que é preciso fazer construções que não são compatíveis com toda a arquitetura anterior da história, e por que todos os estilos arquitetônicos anteriores, apesar de muito diferentes entre si, encontraram uma forma de ser coerentes com tudo o que veio antes, ele vai responder: “Por razões técnicas, não podemos continuar construindo como fazíamos antes”. E, quando você comenta que é perfeitamente possível fazer isso, pelo menos na aparência externa dos edifícios (não que ninguém esteja exigindo repetições exatas), ele vai mudar de argumento e dizer que, de todo modo, os prédios novos na verdade são melhores que os antigos e representam o progresso. Como se houvesse algum progresso de Veneza para, digamos, Novosibirsk.

A indiferença à beleza

O pai de um amigo meu, um imigrante da União Soviética nos tempos de Leonid Brejnev, vinha a Londres quando isso era politicamente possível e se interessava apenas pelos horríveis prédios modernistas que causaram muito mais dano ao tecido da cidade do que Luftwaffe o fez durante a guerra. Ele era engenheiro de profissão e continuava sendo um verdadeiro homem soviético. Olhava para as placas de vidro e concreto por um momento e dizia: “É uma solução interessante para o problema”. As belezas da cidade não tinham apelo para ele.

Hoje em dia, acreditamos que existem pessoas que nascem sem a capacidade de estabelecer um contato normal com as outras e que, por carecerem de empatia, parecem estranhamente distanciadas da existência social; existem também os psicopatas que carecem da capacidade de se solidarizar com os demais e são indiferentes ao sofrimento que causam, ou obtêm prazer nele. Parece que existe mais uma categoria: a das pessoas indiferentes à beleza, que são incapazes de reconhecê-la (e, portanto, seu oposto), assim como pessoas sem ouvido musical não conseguem reconhecer a genialidade de Mozart.

O pai do meu amigo era uma dessas pessoas: elas floresceram durante o regime soviético, com os marxistas desconfiados de que a demanda por beleza era apenas uma cortina de fumaça para a contrarrevolução. Mas o capitalismo e a social-democracia têm, por razões diferentes, muitas figuras parecidas e que obtiveram muito poder e influência: se você duvida, venha a Londres.
 
BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

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