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por Matheus Rocha | Folhapress
Confrontadas por denúncias de fraudes no sistema de cotas e por
reivindicações dos movimentos negros, universidades públicas decidiram
criar bancas para avaliar a autodeclaração dos candidatos, documento no
qual o estudante diz ser preto ou pardo para ter direito às ações
afirmativas.
Em alguns casos, as instituições promovem até cursos e oficinas para capacitar os avaliadores para a identificação.
Essas comissões realizam a chamada heteroidentificação, ou seja,
processo em que a identificação racial é feita por outras pessoas, e não
apenas pela declaração dos estudantes. É isso que faz a UFRJ
(Universidade Federal do Rio de Janeiro) desde o primeiro semestre de
2020.
A medida foi implementada após a instituição receber denúncias de que
pessoas brancas haviam feito uso indevido das cotas raciais. Em 2019, a
instituição criou primeiro uma comissão para avaliar 428 notificações.
Em um segundo momento, estabeleceu a comissão de heteroidentificação
para atuar de forma preventiva e descobrir possíveis fraudes antes de a
matrícula ser feita. A UFRJ diz que, após a instalação, as denúncias
praticamente zeraram.
Coordenadora da Câmara de Políticas Raciais e da comissão de
heteroidentificação da UFRJ, Denise Góes explica que a banca que avalia
os cotistas é composta por três membros da comunidade universitária,
isto é, professores, alunos ou técnicos. Além disso, a composição da
banca tem diversidade de gênero e raça.
Os membros do colegiado se reúnem de forma presencial com o
estudante, que lê na frente do grupo uma declaração explicando por que
se considera negro.
Para que a autodeclaração seja aceita, é preciso haver uma decisão
unânime entre os três membros. O resultado costuma sair em cerca de 15
minutos. Em caso de dúvida, o candidato é encaminhado a uma comissão de
recursos, formada por cinco membros.
A dúvida, explica Goés, acontece em geral na hora de avaliar pessoas
pardas. Para encarar essas situações, os avaliadores precisam frequentar
um curso sobre temas como etnia, interseccionalidade e racismo
brasileiro.
"Não é simplesmente sentar numa cadeira e dizer quem é branco, negro e
pardo. É entender os mecanismos da sociedade brasileira em relação ao
racismo, à exclusão e à desigualdade", diz ela.
Outra instituição que aposta em cursos para formar avaliadores é a UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora), de Minas Gerais.
Diretor de ações afirmativas da instituição, Julvan Moreira de
Oliveira diz que os membros da comissão precisam acompanhar um curso de
20 horas sobre questão racial. Segundo ele, a universidade também
ministra oficinas onde os avaliadores fazem exercícios para identificar
diferentes grupos.
O pesquisador afirma ainda que as denúncias de fraude caíram depois
que a comissão verificadora foi instalada, em 2019. "Possivelmente a
criação da banca inibiu pessoas que gostariam de fraudar o sistema de
cotas."
Tanto a UFRJ quanto a UFJF usam como critério de avaliação o fenótipo
do candidato, ou seja, as características físicas dele, como cabelo,
cor da pele e formato do nariz e da boca.
Nesse caso, o que está em questão é saber se o estudante é percebido
pela sociedade como negro em razão de sua aparência. Nessa
identificação, pouco importa o parentesco do candidato.
Se ele se declara negro porque sua mãe é desse grupo, mas ele não é
visto dessa maneira pelas pessoas, a tendência é que a autodeclaração
seja indeferida.
RACISMO NO BRASIL É BASEADO NO FENÓTIPO
Autora do livro "Racismo Brasileiro: Uma História da Formação do
País" (Todavia), Ynaê Lopes dos Santos afirma que pessoas negras no
Brasil sofrem racismo em razão de seus traços físicos, motivo pelo qual o
fenótipo é o principal critério para verificar a autodeclaração. "Aqui,
o preconceito é de marca e não de origem", diz a pesquisadora.
Preconceito de origem, explica ela, é aquele contra qualquer pessoa
com ascendência africana, mesmo que ela tenha traços considerados
brancos. Esse tipo de discriminação prevaleceu dos Estados Unidos,
enquanto no Brasil o racismo é baseado sobretudo em traços físicos.
"A nossa história é de quanto menos eu parecer negro, melhor. Mas
isso não impede o pardo de sofrer violência. A polícia não para só preto
retinto. Os agentes de opressão sabem muito bem quem é preto."
O processo de verificação baseado no fenótipo já foi alvo de
contestação. Em 2017, por exemplo, o Ministério Público Federal
recomendou que a UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)
suspendesse o processo de aferição de candidatos que foram denunciados
por supostas fraudes.
À época, o órgão disse que os estudantes relatavam "sentimento de constrangimento e discriminação" por causa da verificação.
Presidente da comissão de verificação racial da universidade, Edilson
Nabarro diz que, em 2017, a universidade indeferiu a autodeclaração de
cerca de 260 candidatos por causa de denúncias.
Apesar disso, afirma ele, os alunos seguem com vínculo ativo na universidade em razão das recomendações do MPF.
"A reitoria fez uma série de tratativas para ajustar a continuidade
das investigações nos termos que o Ministério Público propunha, mas não
houve consenso", diz Nabarro, acrescentando que as investigações sobre
as supostas fraudes estão paradas desde 2017.
Já o Ministério Público Federal diz que não bloqueou as investigações
de fraude, mas sim garantiu que elas respeitassem garantias
constitucionais.
"A recomendação era para que a UFRGS agisse, mas dentro da aplicação
do procedimento correto, que é o da lei 9.784, que trata sobre
procedimentos administrativos. A única recomendação foi para que se
investigasse, mas com a garantia da ampla defesa e do contraditório",
diz o órgão.
Professora do Departamento de História da UnB (Universidade de
Brasília), Mariléa de Almeida diz que as bancas de verificação racial
são respaldadas por um amplo arcabouço legal.
Um desses dispositivos é a ação declaratória de constitucionalidade
41, na qual o STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu, em 2017, ser
constitucional o uso da heteroidentificação para evitar fraudes nas
cotas em concursos públicos.
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