E se a aritmética não o convencer, Excelência, deixe que ao menos a lógica das entranhas torturadas o faça. Orlando Tosetto Jr. para a Crusoé:
Li
por aí, contra a minha vontade (quem lê noticiário político por
vontade? Ah, você lê, amigo? Jura? Então desculpe), um dos candidatos,
um dos ditos favoritos, dizendo que “defender a democracia é defender o
direito a uma alimentação de qualidade”.
Vamos
esquecer esse uso adjetival meio besta que se faz há algum tempo do
substantivo qualidade; vamos esquecer que uma alimentação ruim também é
de qualidade – de qualidade ruim. E vamos lembrar, por outro lado, que o
candidato em questão nunca fulgurou, nem nunca fulgurará, no panteão
dos grandes estilistas da língua, que digo?, nem sequer no mero pedestal
dos poetas da Rua Augusta ou dos influencers de fofoca, esses laureados
modernos.
Não,
vamos nos concentrar no que interessa, o “direito a uma alimentação de
qualidade”. A primeira coisa que nos vêm à mente é: será de qualidade a
alimentação dos políticos em campanha, tendo em vista que a campanha é,
senão o auge, ao menos a parte mais vistosa, mais chamativa, mais
vestida de cores berrantes, mais carregada de maquiagem portenha da
democracia?
Vejamos.
Examinemo-la. Dogão de quiosque do metrô. Pastel de gorda suada na
feira de domingo. Caldo de cana em Cascadura (na pronúncia local,
cáixcadúura). Churrasco grego na 25 de Março. Prato feito no Brás.
Buchada de bode (aqui pelo que façamos uma pausa silenciosa, evocando,
emocionados, o sofrimento do FHC) em Quixeramobim. Acarajé no Minhocão.
Moqueca de tucuriçoca (como assim, tucuriçoca não existe? Há de existir,
amigo; procure, que você acha) em Belém do Pará. Empadinha de estação
de trem. Coxinha da Praça XV (o amigo, aliás, já reparou que toda cidade
grande tem uma Praça XV?). Tudo regado a refrigerante marca B. Ou marca
D. Ou marca Z. Ou a um cafezinho coado nas meias do avô de alguém. Ou
a, Deus nos livre e guarde, café com leite de boteco.
Isso
aí é alimentação de qualidade, caro candidato? É esse um menu que o
senhor leria diante das câmeras da TV, no Pátio das Arcadas, com mãos
trêmulas e peludas, com o ar decidido de um Péricles ou de um Churchill,
com a voz embargada e tonitruante de um Brizola? É essa a ementa para
qual o senhor e seus pares pediriam a assinatura de artistas,
intelectuais, rappers, grafiteiros e mestres-cucas internacionais e
brasucas? É esse o cardápio que o senhor, com ar digno e até usando
gravata, rodeado dos seus assec… assessores, todos com ar ainda mais
digno, encaminharia, sisudo e grave, à sanção do Congresso, sob o nome
de Novas Diretrizes Nacionais Para Uma Alimentação de Qualidade?! A mim
me parece, Excelência, que o senhor está enchendo seu bucho é da mais
requintada culinária de ditadura! De ditadura, sim. Porque, se a comida
de qualidade está com a democracia, a porcariada tem que estar com a
ditadura. Aritmética pura, Excelentíssimo.
E
se a aritmética não o convencer, Excelência, deixe que ao menos a
lógica das entranhas torturadas o faça. Ouça os gritos do seu fígado
afogado em gordura; o pranto dos seus intestinos invadidos por hordas da
pior ralé do colesterol; os suspiros do estômago sob o bombardeio dos
saturados; as cabriolas das artérias e das veias intumescidas pelo
excesso de sal; e o soçobrar melancólico do pâncreas no tsunami dos
carboidratos. O corpo fala, Excelência, e também uiva, berra, soluça.
Ouça-o! É democrático judiar assim das próprias tripas? Tome tenência!
Do
contrário, candidato, o senhor andará por aí contradizendo seu amor
pela democracia com a ostentação da mais despótica das pancinhas, do
mais tiranizador dos pneuzinhos. E permita ainda que lhe dê outro bom
aviso: é pela opressão do ventre que começa a opressão de uma nação.
Da
próxima vez, defenda a democracia com as qualidades de uma saladinha,
de um omelete vegano, até de umas fatias de presunto magro. Defenda
assim a democracia e, claro, a sua nobre silhueta. Ninguém quer cultuar
um vulto barrigudo, uma personalidade com sobrepeso, um estadista
hipertenso.
Fique
porém claro que tudo isso, Excelentíssimo candidato, se aplica ao
senhor, e só ao senhor e ao seu buffet; porque eu e o resto da turma dos
famintos não damos a menor bola para essa conversinha de alimentação de
qualidade e vemos democracia é em prato cheio, seja de gérmen de trigo,
seja de bacon crocante (mais no de bacon, mas aqui falo só por mim).
Tente não esquecer, tá?
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário