A PEC aprovada no Senado na semana passada é a batalha decisiva de um governo que não vê diante de si nenhuma perspectiva séria de reeleição. Artigo do professor Denis Rosenfield para o Estadão:
O
governo Bolsonaro está em seu estertor. Só isso explica um conjunto de
medidas eleitoreiras, ao arrepio da lei e da Constituição, visando
exclusivamente à sua reeleição. Qualquer pudor, qualquer respeito
constitucional e qualquer compostura com os recursos públicos foram
simplesmente desconsiderados. Propostas de governo e futuro de país
tornam-se fora de moda, como se a moda fosse deixar terra arrasada para
outro governante. Se o presidente tivesse um sentido mínimo de
responsabilidade e uma visão de Estado, saberia que, após ele, se ele
mesmo for eventualmente reeleito, há todo um país a ser reconstruído.
Institucionalmente,
o País está arrasado, embora mantenha a aparência jurídica da
normalidade. Exemplo disso, entre tantos outros, está a agora dita PEC
Kamikase, cujo nome vem bem a propósito, visto que é um rombo nas contas
públicas, uma espécie de morte politicamente produzida. Lembre-se que
os kamikases eram pilotos japoneses que, no final da guerra, nas
batalhas do Pacífico, lançavam seus aviões carregados de explosivos
contra os navios aliados. Ou seja, tratava-se de ataques suicidas, assim
planejados.
Ora,
a dita PEC é uma missão suicida no que diz respeito às contas públicas,
à responsabilidade fiscal e, portanto, ao combate à inflação e à
redução da dívida pública, produtora no médio prazo de mais miséria e
menor crescimento. É a batalha decisiva de um governo que não vê diante
de si nenhuma perspectiva séria de reeleição. Não sem razão – se razão
nisso há –, ainda recorre a um inexistente “estado de emergência”, para
que o presidente não seja responsabilizado por irresponsabilidade fiscal
ou por crime eleitoral. Note-se que, em vez de obediência à
Constituição, recorre-se a uma gambiarra jurídica para evitar qualquer
julgamento e condenação. O desrespeito à Constituição adota,
paradoxalmente, uma forma constitucional.
Talvez
não haja maneira melhor de enfraquecer uma democracia do que
aparentemente segui-la, abandonando os seus valores, princípios e
acordos relativos ao bem público. As instituições vão-se erodindo, como
se nada estivesse acontecendo. O cinismo é completo, pois as bocas estão
cheias de palavras que nada significam, apesar de tencionarem algo
dizer. Na superfície, a normalidade continua vigorando, quando essas
mesmas bocas se tornam vorazes na apropriação dos recursos públicos, que
são, como se deveria saber, dos cidadãos, fruto dos impostos.
A
contrapartida ao enfraquecimento democrático consiste nesta voracidade
de parlamentares que passaram a controlar o Orçamento. O governo
Bolsonaro está abdicando de governar, transferindo essa função a
deputados e senadores que passariam a ter uma espécie de reserva de
mercado no destino desses recursos. O dito orçamento secreto, que de
secreto não tem mais nada, passaria a ser impositivo, segundo alguns
deputados, levando qualquer governo progressivamente à imobilidade. O
governo não mais governaria e o Parlamento só legislaria para melhor
abocanhar sua fatia dos impostos. Do ponto de vista governamental, é
propriamente kamikase!
Nesta
tentativa de apagamento da democracia, do ato mesmo de governar em
função do bem público, o presidente investe contra as urnas eletrônicas,
como se fosse esse o grande problema nacional. Fome, miséria, inflação
e, portanto, o desespero de milhões de brasileiros não fazem parte de
suas preocupações. Tudo é manobra diversionista.
Não
deveria, então, surpreender que a candidatura do ex-presidente Lula
progrida, pois está conseguindo capturar para si um forte sentimento
antibolsonarista, expressão de um país que começa a fartar-se de tanta
pantomima e irresponsabilidade. E isto que as propostas petistas são
atrasadas e nada oferecem de concreto no que diz respeito ao
enfrentamento dos grandes problemas nacionais. Aliás, se falassem menos,
poderiam avançar mais, uma vez que Bolsonaro joga contra si mesmo,
fazendo o jogo do seu adversário principal. Se fosse petista, estaria
apostando na radicalização bolsonarista.
Nada
disso, porém, é brincadeira, por mais fanfarronice que se faça
presente. É claro que a cobertura é muitas vezes politicamente correta,
porque o discurso social não deixa de aparecer sob a forma de Auxílio
Brasil, auxílio taxista, auxílio caminhoneiro ou outro grupo qualquer
que o presidente procure privilegiar. Privilégio que se deve unicamente
ao projeto reeleitoral, exclusiva preocupação bolsonarista. Os próprios
senadores, infelizmente, caíram nesta arapuca, demonstrando falta de
descortino político.
E
isto no contexto mais geral de uma investida contra o processo
eleitoral propriamente dito, via questionamento das urnas eletrônicas.
Talvez o presidente Bolsonaro seja o único político do mundo a reclamar
de fraude num processo eleitoral que o elegeu! Por coerência, deveria
ter apresentado uma representação contra sua própria vitória. Agora, com
a derrota se aproximando, o seu alvo passa a ser a própria democracia.
Os bolsonaristas estão se tornando kamikases.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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