sábado, 30 de julho de 2022

Há gente mortinha por dar nas vistas

 



No fim do primeiro quartel do século XXI, com os portentosos avanços da medicina de que dispomos, morremos sobretudo sem saber porquê. Se somarmos a isto a perseguição à propriedade privada e a entrada dos insetos nos cardápios, não tarda que a evolução da espécie nos devolva ao orangotango. Via Observador, a crônica semanal de Alberto Gonçalves:


Cá e lá fora, tem-se falado muito do excesso de mortalidade. Bem, para dizer a verdade, não se tem falado tanto quanto isso. E o relativo silêncio é curioso. Durante dois anos, fechou-se metade da humanidade para evitar, sem particular sucesso, mortes desnecessárias. Agora que as mortes desnecessárias continuam a acontecer, as “autoridades” e os “media”, tão caridosos e aflitos em 2020 e 2021, não lhes ligam nenhuma.

Uma possível explicação prende-se com o facto de não se conseguir imputar à Covid todo o “superavit” vigente de falecidos. Longe vão os saudosos tempos em que cada finado, incluindo os que se finaram sob os eixos de um autocarro, partia “de”, “com” ou “por” Covid. Reduzir a realidade ao bicho que veio da China conferia a esta o estatuto de maior cataclismo desde o Dilúvio, facilitava o enchimento de “telejornais” e emprestava aos políticos a possibilidade de fingirem resolver uns problemas enquanto criavam problemas maiores. O povo, entretido com o medo e a Netflix, agradecia tudo.

Por azar, a presente vaga de óbitos a mais – que atinge a maioria do Ocidente e cuja vanguarda Portugal naturalmente integra – não se esgota na Covid. A presença da Covid, decerto medida com o rigor habitual, justifica apenas uma parte dos óbitos. Uma segunda parte, desconfio, são os infelizes que não foram consultados, diagnosticados, medicados ou operados a pretexto de a Covid não ceder espaço a leviandades como cancros e maçadas cardiovasculares. Se ninguém lhes ligou na altura devida, é compreensível que se mantenham desprezados na altura da morte.

Sucede que uma terceira, e pelos vistos significativa, parcela do actual excesso de defuntos não morre nem de Covid nem de enfermidades “tradicionais”. Morre de quê, então? Ui, isso é complicado. Para início de conversa, é preferível descrever como esses coitados morrem: de repente. E de repente também, a “morte súbita” parece ter saído das anomalias estatísticas para se tornar um critério relevante na contabilidade das funerárias. Quais são os sintomas desta doença inesperada (em vários sentidos)? O grande Mark Steyn enumera ambos: num momento, estamos bem; no momento seguinte, estamos mortos.

É claro que a ciência estará a tentar descobrir os motivos do fenómeno. Desgraçadamente, os pantomineiros que saltitam pelas televisões e pelos jornais chegaram antes. Incansáveis, os “especialistas” do costume avançam com múltiplas causas para a pandemia de “morte súbita”, uma ou duas causas por “especialista”.

A consulta ao Google, o nacional e o estrangeiro, é inspiradora. Há os “especialistas” que vão pelo seguro e se ficam por trivialidades. É possível, dizem, que essas mortes se devam ao calor, tese que funciona sobretudo quando está quente, mas que depressa se adapta ao frio e, com jeito, ao clima ameno. A lacuna da tese é o calor, o frio e as temperaturas intermédias serem coisas velhas, e a quantidade de “mortes súbitas” coisa nova. É aí que os “especialistas” jogam o trunfo: o aquecimento global. Ou as alterações climáticas. Ou a emergência climática. Ou o suicídio colectivo climático, para usar o neologismo fresquinho do eng. Guterres. Recapitulando, as pessoas morrem repentinamente de calor, de frio e, quiçá, da angústia de sentirem o planeta em risco. Estamos entendidos?

Não estamos. Inúmeros “especialistas” empenham-se em fugir ao óbvio e pesquisam em lugares improváveis a razão para que milhares de sujeitos bem dispostos desatem, num ápice, a esticar o pernil. As hipóteses que se seguem são retiradas da imprensa britânica, a qual, ancorada no conhecimento dos sábios, atribui as “mortes súbitas” a: 1) Aumento da factura da luz; 2) “Stress” pandémico; 3) Fanatismo futebolístico; 4) Cigarros electrónicos; 5) Bebidas alcoólicas, mesmo que ocasionais; 6) Falhar o pequeno-almoço; 7) Obsessão com previsões meteorológicas; 8) Dietas não saudáveis; 9) Dietas saudáveis; 10) Microorganismos sortidos; 11) Sedentarismo; 12) Prática de desporto; 13) Medo da guerra na Ucrânia. Por mim, acrescento ainda a herança colonial, o racismo sistémico, a supremacia branca, o heteropatriarcado, o capitalismo selvagem, o capitalismo domesticado, os transportes privados, a discriminação de transgénero e as ameixas maduras. E as ameixas verdes, evidentemente.

Face a tamanha profusão de explicações, é compreensível que alguns países ou regiões prefiram evitar a especificidade na hora de apontar culpas. A província de Alberta, no Canadá, começou a imputar as “mortes súbitas” a “causas desconhecidas”. Hoje, é oficial: as “causas desconhecidas” são, destacadas, a principal causa de morte em Alberta e, provavelmente, noutros sítios que tivessem a decência de assumir a ignorância. Curioso. No fim do primeiro quartel do século XXI, com os portentosos avanços da medicina de que dispomos, morremos sobretudo sem saber porquê. Se somarmos a isto a perseguição à propriedade privada e a entrada dos insectos nas ementas, não tarda que a evolução da espécie nos devolva ao orangotango.

Porém, não vou divagar. Nem especular sobre as novidades e as mudanças que, no mundo dos últimos 15 ou 18 meses, seriam susceptíveis de influenciar a mortalidade. Não me apetece polémicas. À cautela, admito que o provável é os mortos em excesso morrerem por defeito, o defeito da vaidade. Vai-se a ver e aquilo é gente que quer ser diferente e anda mortinha por dar nas vistas. Gente assim faz o que calha para aparecer. Incluindo desaparecer.
 
BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

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