O mundo de hoje certamente não aceitaria um negro sorridente cantando essas palavras. É obrigação revoltar-se contra as injustiças do mundo e pedir pano e pão – arco, não. Bruna Frascolla para a Gazeta do Povo:
Certa
feita uma Big Tech, numa dessas propagandas compulsórias que nos
empurram, resolveu me mandar apreciar a cultura negra. A imagem era a de
um sujeito emburrado com uma roupa de basquete. O Brasil, segundo diz o
IBGE ideologizado, é um país de maioria negra. O Brasil certamente não é
a terra do basquete. O basquete tampouco é um esporte com uma relação
especial com a África, e no Brasil, em particular, o esporte remete à
figura altona de Oscar, que acontece de ser branco e ter sobrenome
alemão. No esporte predileto do país, porém, pensamos em Pelé, que
acontece de ser negro. Ainda assim, sempre esteve claro para nós,
brasileiros, que não há uma relação entre o esporte e a cor. Atrelamos
Pelé antes à nacionalidade brasileira que à cor negra, e a ele
contrapomos Maradona, que acontece de ser branco mas enxergamos antes
como um argentino. Não à toa, esse negro que é considerado rei e símbolo
nacional tem a sua vida pessoal vilipendiada pelo movimento negro, que
não se conforma com sua figura altiva, alegre e bem sucedida. Por fim,
se eu fosse associar algum esporte à cultura negra no Brasil, seria a
capoeira, que, apesar de ser um esporte brasileiro, tem suas origens em
comunidades de escravos negros, e traz distintas marcas musicais da
África.
O
próprio fato de ser uma arte marcial musicada é uma atipia dentro das
artes marciais. Aqui o militante ressentido dirá que a música e a dança
eram disfarces do negro revoltado para distrair os brancos. Pedem então
que acreditemos que a música e a dança fazem parte da religiosidade
negra (seja no candomblé ou na gospel music) de maneira espontânea, mas
que na luta era só fingimento. Bobagem. Isso reflete o humor depressivo
deles, que, com todo o conforto material, não são capazes de ter a
leveza de espírito dos seus (aliás, nossos) antepassados escravos.
Raízes retrabalhadas
O
berimbau é um instrumento brasileiro, como se pode inferir pela cabaça.
Se a cabaça do berimbau é do continente americano, o berimbau não pode
ter sido trazido pronto da África. O arco com uma corda, porém, é um
instrumento comum em várias culturas africanas. Somos então levados a
imaginar neste país a figura de um escravo africano que, em algum
momento de descanso, se entregou ao lazer de experimentar a sonoridade
das coisas novas da terra e achou uma boa ideia prender a cabaça ao
arco. Na verdade, a própria presença do arco já é um indício do valor
que um objeto musical tinha para os escravos. No começo do século XVIII,
Antonil registrou que o conselho dos senhores no trato com os escravos
era resolver tudo com três P: pau, pão e pano. Num ato de liberdade, o
escravo acrescentava por conta própria à sua realidade o arco, e,
depois, o berimbau. O movimento negro, hoje, só quer reivindicar pão e
pano. O arco é alienação, consciente mesmo é quem pede quinhões maiores
daquilo que o trabalhador já ganha de qualquer jeito, ou – o que é
novidade desde o fim da servidão – a chance de conseguir ser um
trabalhador, nem que seja mediante cota racial. Aí ele se submete com
gosto a ser avaliado pelo físico, igual a um cavalo.
Tal
como o português, o negro se adaptou às coisas da terra e usou-as para
aprimorar a sua cultura. O berimbau e o atabaque são invenções do negro
no Brasil, que pôde continuar a sua musicalidade sem grandes rupturas
com a África. Em toda a América com presença negra, chegou a batucada,
cujo ritmo sincopado se misturou com a música de outras culturas e criou
novos gêneros musicais. Uma aparente exceção são os EUA, onde a
musicalidade negra remete a instrumentos de sopro em vez de percussão.
Ainda assim, os EUA seguem a regra geral de ter os negros como expressão
poderosa no campo musical. Seus gêneros musicais originais que caíram
no gosto do mundo – o jazz e o rock – são música de origem negra.
A
excepcionalidade dos EUA se explica pelos Black Codes, de 1832, que
proibiam os negros de tocarem tambor. Privados do seu instrumento
predileto, deram um jeito de continuar o ritmo com outros.
“Que mundo maravilhoso!”
E
aqui voltamos ao negro de cara amarrada com camisa de basquete. Há não
muito tempo atrás, cultura negra dos EUA remetia a música de qualidade.
Grandes personalidades eram Ray Charles, Billie Holiday, Ella
Fitzgerald, Louis Armstrong e, como não, o pioneiro Jimi Hendrix. O jazz
e o rock transcenderam o nicho negro e se espalharam pelo país antes de
se globalizar. Por outro lado, desconheço um esportista que tenha, nos
EUA, ocupado uma posição similar à de Pelé. Eles não têm um esporte
nacional predileto; negros gostam de basquete e brancos jogam aquelas
coisas esquisitas cujas regras ninguém entende (futebol americano,
hóquei, beisebol). Tampouco sei de campanhas difamatórias movidas contra
grandes personalidades da música. Em vez disso, noto um desvanecimento
da memória num mundo em que todo o tempo parece estático dentro de um
manualzinho corporativo a-histórico de Robin diAngelo (a Djamila lá
deles). Negro? O que é um negro? Um cara enfezado com roupa de basquete,
um manifestante do BLM, uma vítima da sociedade, George Floyd. E nada
mais. Se falar de Luther King virou coisa de direita, quem vai se
importar com uma singela canção, que exclama “Que mundo maravilhoso”?
Essa,
sim, uma canção cuja melodia todo ocidental conhece na voz marcante de
Louis Armstrong, ainda que não saiba a letra nem conheça o cantor. Ele
lançou a música em 67 com a autoria de um pseudônimo desconhecido (na
verdade eram Bob Thiele e David Weiss), e a música não demorou a ser um
estrondoso sucesso mundial. A letra diz: “Vejo o verde das árvores, o
vermelho das rosas também […] As cores do arco-íris, tão lindas no céu,
estão também nas caras das pessoas indo e vindo. Vejo amigos se
cumprimentando, perguntando ‘Como vai você?’. Eles na verdade dizem ‘Eu
te amo’. […] Eu penso comigo mesmo: Que mundo maravilhoso!”.
O
mundo de hoje certamente não aceitaria um negro sorridente cantando
essas palavras. É obrigação revoltar-se contra as injustiças do mundo e
pedir pano e pão – arco, não. E o que vale primeiro para os negros
(tenham em mente o experimento social de desagregação familiar tão
denunciado por Thomas Sowell e Walter Williams) em seguida passa a valer
para todos: somos bombardeados por uma propaganda que nos manda
reclamar da vida o tempo inteiro, dando um jeito de nos vitimizarmos. Se
você for um homem branco heterossexual, pode muito bem alegar que é
gordo, neuroatípico ou inventar uma identidade de gênero para chamar de
sua. E depois deve pedir sempre mais pão e mais pano, como se uma mão
tão poderosa, capaz de prover tanto pão e tanto pano, não estivesse
associada também ao pau.
É
provável que muita gente instruída, se prestasse atenção à letra de
“What a Wonderful World”, achasse o eu lírico um idiota. Esperto mesmo é
quem “sabe” que o mundo é somente horrível e passa o maior tempo
possível enfezado. Depois se droga (com drogas lícitas ou ilícitas) e
não sabe por quê.
O
mundo é do tamanho do mundo. Há como o mundo ser horrível e maravilhoso
ao mesmo tempo, e a sabedoria manda pensarmos de vez em quando, conosco
mesmos, que mundo maravilhoso. Sem dúvida, é mais fácil fazer isso do
mesmo jeito que o eu lírico, por meio de coisas pequenas do dia a dia,
em vez de depositar as esperanças em política institucional ou correntes
intelectuais. Um escravo era capaz de encontrar prazer distinto de pão e
pano, e duvido muito que o fizesse por meio de ideologia ou política.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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