O atual embate a que o Brasil assiste lembra os estertores da República Romana, com o sangrento confronto entre Mário e Sila. Modesto Carvalhosa para o Estadão:
As
eleições de outubro deste ano voltam a ter dois candidatos populistas,
como ocorreu no segundo turno em 1989, entre Fernando Collor de Mello e
Lula. Só que, desta vez, o radicalismo das legiões de fanáticos que
seguem os dois notórios postulantes vai levar a campanha a níveis de
baixeza nunca dantes experimentados.
Desde
1930, com a queda da Primeira República, houve sempre um líder
populista que se apresentou como defensor do povo “contra os seus
exploradores”. E estes “condutores do povo” sempre derrotaram os
candidatos democráticos, civilizados, representados, primeiramente, pela
antiga União Democrática Nacional (UDN), e que formulavam propostas
coerentes para as grandes questões nacionais. Quem venceu o primeiro
embate eleitoral entre essas duas forças foi o maior e mais longevo
líder populista de nossa história, o ex-ditador Getúlio Vargas, à frente
dos chamados queremistas; depois, por intermédio do seu preposto Eurico
Gaspar Dutra, em 1946; e, novamente, por ele próprio, em 1951.
Seguiram-se Juscelino Kubitschek, em 1956; Jânio Quadros, em 1961;
Collor, em 1990; Lula, em 2003; sua preposta Dilma Rousseff, em 2011; e
Jair Bolsonaro, em 2019.
Todos
esses vitoriosos demagogos não têm nenhuma vocação democrática. Sempre
estiveram e estão em busca de modelos autoritários na esquerda e na
direita: Benito Mussolini, Hugo Chávez, Recep Erdogan, Fidel Castro,
Viktor Orbán, Manuel Noriega, Juan Perón, Alberto Fujimori, Donald
Trump, Vladimir Putin, etc.
Ocorre
que no Brasil real estes ilusionistas do povo sempre se puseram a
serviço do nosso secular patrimonialismo e corporativismo extrativista e
predatório. A exceção foi Fernando Henrique Cardoso, na esteira do
Plano Real. Foi o único presidente eleito com espírito público, que
procurou modernizar o Estado, mas acabou entregando o poder, como os
seus colegas populistas, ao arcaico e corrupto estamento político
liderado pelo famigerado Centrão, coadjuvado por partidos falsamente
oposicionistas.
O
atual embate direto entre os nossos dois candidatos populistas lembra
os estertores da República Romana, que nos anos 80 antes de Cristo
experimentou o sangrento confronto eleitoral entre Mário e Sila, dois
cônsules demagogos que se digladiaram pelo poder na Urbe. Essa disputa
extremamente radicalizada levou à instauração da autocracia imperial,
com a supressão da democracia romana, que havia se sustentado por quatro
séculos (508 a.C. – 60 a.C.) na base da não reeleição para nenhum cargo
(edil, pretor, tribuno, cônsul), do voto direto da cidadania e da
supremacia da Assembleia democrática sobre o aristocrático Senado.
Descrevendo
esses dois terríveis cônsules, Indro Montanelli (Storia di Roma) nos dá
as características do líder populista: “Pessoa que tem o raro talento
de conhecer os seres humanos e os meios de explorar, de forma fria e
calculista, suas fraquezas e suas preferências”.
É
exatamente isso. O político populista não tem nenhum compromisso, a não
ser com o exercício do poder pelo poder e pelo doentio culto de sua
personalidade. Faltam-lhe, sobretudo, caráter, ética, humanidade, amor
ao próximo e preocupação com sua honra pessoal ou com os compromissos
que falsamente assume perante o povo. Estes demagogos não têm noção do
que sejam políticas públicas, permanentes ou de governo. Ao contrário,
procuram, com discursos duais, encantar os eleitores apontando para
inimigos imaginários: “nós e eles”, “o perigo comunista”, “a
desagregação dos costumes”, etc. Procuram, sobretudo, incutir nos
eleitores uma falsa sensação de que o povo partilha do poder, no
permanente combate aos fictícios males que fantasiosamente apontam. Com
um cínico discurso, praticam o estelionato eleitoral e político,
enquanto formam uma legião que os segue, alimentada por símbolos criados
ou usurpados, explorando as frustrações, fomentando ódios, sectarismos,
fobias, racismos, e negando as conquistas do conhecimento.
Uma
vez no gozo do poder, passam a culpar o mundo pelo desastre de sua
administração, que sempre leva à degeneração do Estado e à desagregação
da sociedade. Esta última acaba se dividindo em duas grandes facções
fundadas no ódio, na mentira e na violência, separando famílias,
gerações e dissolvendo amizades – desintegrando, enfim, os valores
indispensáveis ao convívio social.
Enquanto
tivermos o sistema de reeleição para presidente, governadores,
senadores, deputados e vereadores; o voto proporcional, ao invés do voto
distrital; o monopólio dos partidos impedindo o acesso independente da
cidadania à vida pública; e, ainda, enquanto mantivermos o assalto
oficial dos recursos públicos que permite o domínio dos políticos
profissionais, eternamente reeleitos na base das emendas parlamentares
ao Orçamento, do Fundo Partidário e do Fundo Eleitoral, não sairemos
desta camisa de força que nos condena a viver sob o jugo de líderes
populistas, com seus discursos falsos que nos infelicitam e destroem
nosso presente e nosso futuro.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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