Ensaio do professor e ensaísta Luiz Felipe Pondé sobre o filósofo britânico Michael Oakeshott, disponível em Pepsic (Periódicos Eletrônicos em Psicologia) e aqui reproduzido na íntegra:
Este
texto discute o mito da torre de babel tal como aparece na obra do
filósofo inglês contemporâneo Michael Oakeshott. Um mito narra uma
estrutura ancestral da mente humana, nos seus aspectos sociais e
psicológicos. Oakeshott trabalha a torre de babel em duas chaves: via
filosofia moral, criticando o excesso de racionalismo na moral moderna e
iluminando a importância da moral do hábito e do afeto, duramente
desqualificada pelo projeto do “paraíso moral racional”, e em seguida,
via um ensaio literário onde ele retoma o mito de babel para apontar os
sintomas psico-sociais de uma sociedade maníaca pela construção social
do paraíso.
***
A
idéia de que mitos são verdades psicológicas profundas é hoje uma
banalidade. Mais do que uma verdade apenas, eu penso que talvez alguns
deles descrevam maldições humanas que zombam da Razão. Não vou me ater a
uma definição especifica de “maldição”, prefiro deixar falar o próprio
mito na forma de comentário filosófico. Minha intenção aqui é apresentar
dois exemplos de como o mito da torre de babel pode ser um excelente
operador para a analise de uma dessas maldições: a saber, a desgraça que
brota da obsessão humana pelo paraíso, o lugar onde a felicidade seria
finalmente a forma única da vida. Para tal, discutirei dois ensaios do
filósofo inglês Michael Oakeshott. Ambos tratam do mito de Babel, um na
forma filosófica, outro na forma literária, ambos respondem pelo mesmo
título, “Torre de Babel”. É impressionante o modo como o objeto de Babel
(o paraíso construído pelas mãos humanas) é hoje mais contemporâneo do
que nunca. Num mundo herdeiro das utopias racionalistas ou românticas de
Bacon a Rousseau, qual seria o Outro indesejável (o único que
interessa) da modernidade? Quem seria o estrangeiro monstruoso, ou o
estranho ameaçador? A proposta deste ensaio é vê-lo como a maldição, que
paira sobre nossa obsessão pelo paraíso. O racionalismo moderno é uma
espécie de pensamento mágico através do qual o ser humano inventa um
homem que não existe, para criar um mundo, que por usa vez, também não
existe. Mas, como este projeto é articulado num discurso organizado, ele
nos parece descrever uma realidade possível: patologias morais (de
comportamento, pensamento e afetos) surgem nesse processo. Uma viagem ao
eternamente reprimido da modernidade, o fracasso, é o objeto deste
ensaio. Como diz Jó, personagem bíblico (que no cânone hebraico
representa o antípoda do projeto Babel), o homem parece ter sido feito
para a miséria, assim como a águia foi feita pra voar. Vejamos como
Oakeshott interpreta essa maldição: nada como o “vôo do corvo” para nos
abrir as portas deste paraíso infeliz.
O modo filosófico
A busca de perfeição, como o vôo do corvo, é uma atividade tanto impura e impiedosa quanto inevitável na vida humana. Ela envolve os castigos da impureza e da impiedade... (Oakeshott, 1991d, p. 466).
A
atividade moral é, segundo Oakeshott, o tipo de ação que nasce do
comportamento humano livre de condicionamento natural. O condicionamento
natural iguala os homens às bestas, guardando-se as diferenças
fisiológicas de cada espécie. Uma ação é moral quando o agente tem uma
alternativa à determinação natural &– mesmo que correndo risco de
vida. A vida moral se apresenta como uma dupla natureza de forma e
conteúdo: a forma sendo o modo cognitivo e prático de como a ação moral
se dá, e o conteúdo, as definições semânticas que dão substância a esta
forma. No ensaio que analisamos aqui, o foco de atenção é apenas a forma
da vida moral, sem que Oakeshott se ocupe do conteúdo da ação moral.
Por isso, questões como “qual a natureza última do Bem?” Ou “qual o
critério que diferencia Bem e Mal?”, ficarão sem qualquer atenção. Após a
leitura de todo o ensaio, perceberemos que sim o autor faz um juízo de
valor do modo como se encontra nossa vida moral moderna: ela apresenta
problemas sérios, a expressão misfortune (utilizada por Oakeshott ao
final do seu comentário filosófico), que podemos traduzir por “desgraça”
ou “má sorte”, indica esse juízo pouco otimista. Essa má sorte é
exatamente a manifestação da condição de Babel em que vivemos. Para
compreendermos essa má sorte, acompanharemos o pensador inglês na
análise de duas formas distintas, mas relacionadas, de vida moral.
Primeira forma de vida moral:
O hábito do afeto e do comportamento
Na primeira das formas, a vida moral é um hábito de afeto e comportamento; não um hábito de pensamento reflexivo, mas um hábito de afeto e conduta (Oakeshott, 1991d, p. 467).1
Esta
definição de Oakeshott é central em toda sua argumentação: o primeiro
tipo de vida moral, aquele que, como veremos, sofre a agressão
sistemática do modo racionalista de ser desde o Renascimento (Oakeshott, 1991a, 1991c, 1996)2,
se caracteriza por ser uma estrutura sem prevalência do raciocínio
consciente e reflexivo. O autor usa expressões como “afeto”, “hábito” e
“conduta”, o que nos conduz ao cenário de atitudes que transcendem
fórmulas ideais racionais conscientes. Estamos anos luz de distância de
Kant ou mesmo de Bentham (Pojman, 2000). O traço anti-idealista marcará a
crítica que ele fará ao excesso de racionalismo moral presente na
segunda forma de ação moral a ser analisada. Não se trata de
percorrermos uma estrada de modelos construídos a partir de enunciados
morais argumentados a favor ou contra algo. Não há qualquer teoria moral
em jogo. Tampouco se trata de uma moral de “primitivos”, mas sim um
hábito de conduta que pode se manifestar tanto num ato como numa recusa
ao ato, como numa experiência de nojo diante de algo. Por exemplo3,
uma mulher de 25 anos pode se chocar com a idéia do aborto ou de
utilizarmos fetos abortados em pesquisas de cosméticos sem conseguir,
necessariamente, expor as causas “científicas” ou “racionais” de sua
recusa de modo argumentado, e por isso mesmo acabar incorrendo no
“pecado da crença metafísica”. Um sentimento estranho de mal estar
(imagem do próprio autor) poderá invadir sua alma sem que ela saiba a
causa de modo refletido. Neste exemplo, pessoas tomadas pela fúria da
segunda forma de vida moral, o racionalismo da idéia moral, seguramente
tenderão a ver nesse simples mal estar sem força argumentativa
resquícios de crenças religiosas sem valor ou hábitos mentais
ultrapassados. Nesta primeira forma de vida moral, uma idéia não vale
mais do que um afeto &– o mal estar, neste caso. Para Oakeshott esta
questão é essencial, pois aponta para o campo da experiência prática
que transcende os excessos da alma teórica moderna (Oakeschott, 1991c).
Este respeito pelo tecido ancestral de hábitos marca seu cuidado com as
ilusões de uma modernidade excessivamente “futurista” e
racional-dependente. Nesta primeira forma de vida moral não estamos
diante de um drama de escrúpulos morais, mas sim do ato continuo de uma
tradição de ação, por isso Oakeshott dirá que a consciência reflexiva
neste caso não é autoridade. Isso não significa que esta forma de vida
moral não seja passível de se organizar em regras explícitas de conduta
ou preceitos, mas sim que não aprendemos essa forma de vida moral
partindo de regras explícitas de conduta ou preceitos: o hábito moral do
afeto é aprendido assim como se aprende a língua materna, diz o próprio
autor. Portanto, o excessivo acúmulo de demandas de reformulação da
vida moral a partir de regras conceituais de conduta ou preceitos
poderá, na realidade, criar crises no hábito de afeto, mas dificilmente
criará um hábito de afeto se quer &– aprende-se uma língua vivendo
no lugar onde as pessoas sonham nela e não pelo estudo racional de sua
gramática. A força desse hábito não é fruto do constrangimento das
razões, mas sim da experiência de inevitabilidade da ação (isto é, a
pressão pela decisão) que surge no cotidiano de quem vive em meio à
imperfeição inexorável da vida pára além da definição do conteúdo da
vida moral em si. Essa inevitabilidade, muito distinta do
constrangimento por regras, pode se manifestar num ato quase tão
automático quanto o sono, por isso Oakeshott diz que essa forma de vida
moral transcende a vigília e adentra a escuridão significativa dos
sonhos. Nas palavras do próprio autor, a aprendizagem dessa primeira
forma de vida moral, “É o tipo de educação que dá o poder de agir
apropriadamente e sem hesitação, dúvida ou dificuldade, mas que não dá a
habilidade de explicar nossas ações através de termos abstratos ou de
defendê-las como se fossem formas emanadas a partir de princípios
morais” (Oakeschott, 1991d, p. 470).
A crítica da abstração em moral e política data da obra do filósofo irlandês Edmund Burke e seu horror pelos excessos da metafísica política e moral jacobina (Burke, 2003). O horror a abstração fora de lugar é um traço marcante da crítica a modernidade que nasce com Burke e aparece muito claramente nos ensaios de Oakeshott, apesar dele não se dizer um “descendente direto” do crítico Irlandês (Oakeshott, 1991b). Os excessos da abstração interrompem a consistência do hábito e da correta avaliação da vida dada na sutileza da sua carne. Este hábito está longe de ser mero acúmulo de superstições, embora corra esse risco quando se torna excessivamente acuado ou defensivo, mas sim comportamentos testados pelos séculos de experiência humana prática, reflexos de nossa dolorosa passagem pelo tempo e pelo espaço. A prática do afeto moral não é ignorante, apenas não é dependente da hesitação da reflexão, tampouco de sua fundamentação. Seu fundamento é a imediaticidade de uma experiência acumulada de sucessos e fracassos cheios de sentido na vida social e afetiva do grupo e do indivíduo. Por isso Oakeshott remete à dor do amour-propre4 e da auto-estima quando se refere às formas de crise desse hábito: quando esta forma de vida moral sofre excessivamente, homens e mulheres sentem vergonha, nojo, agonia, mal estar, desorientação. Não são ideais e formulas que orientam as almas, mas a relação intima entre a conduta moral, o amor próprio e a auto-estima. Interessante pensar, embora não possamos nos aprofundar aqui, o quanto esta linha de raciocínio pode nos ajudar a refletir sobre nossa epidemia de angustia existencial associada a industria da auto-estima e suas fórmulas vendidas no mercado da agonia. O hábito do afeto é elástico como é a vida afetiva dos seres humanos, ele nunca é estático, como pensa a nossa vã filosofia racionalista. Encontra-se sempre pronto para se adaptar, seja de forma silenciosa, mesmo que dolorosa, seja através de dramas causados pelas dores das inquietações práticas da vida comum. Como não há manias idealistas construídas por argumentos e debates articulados em frases eloqüentes, o afeto moral não é fixo numa formula moral clara, mas nem por isso ele é menos ativo ou ágil, pelo contrário. Por isso Oakeshott vê nele a nuance que não existe nos modos racionais da controvérsia moral. O costume “é cego como o morcego”: não vê através de princípios, se movimenta pelo toque concreto dos fatos que demandam resposta moral. Aqui encontramos um dos erros mais comuns e que caracteriza grande parte da reflexão moral ou ética na modernidade: a idéia de que não há mudanças no hábito ou no costume. Na há mudanças movidas por controvérsias acerca de definições morais (e há mesmo quase uma desconfiança atávica quanto a esse tipo de mudança). O costume se adapta de modo tão sutil que parece um movimento invisível &– o tato parece pressentilo melhor do que a visão. Nele sobra o espírito de finesse que falta no racionalismo moral, obcecado pelo espírito de geométrie, como diria Pascal5.
Outro
traço essencial que infelizmente a reflexão filosófica de maior
importância nos últimos séculos deu pouca atenção ou simplesmente
desconheceu, é a identificação entre esta forma de vida moral e a
inexistência de liberdade ou “respeito” a diferença. Devido à tendência a
ser “invisível”, a forma e a dinâmica do hábito envolvem comportamentos
excêntricos sem denunciá-los como atos “diferentes”. A liberdade aí
presente nunca é um conceito, ou um princípio, mas se revela como um ato
contínuo que aceita, mas não discute, sofre, agonia-se, recusa e sente
culpa. Aqui se encontram umas das fronteiras do drama moral moderno:
nossa mania racionalista agride o afeto moral, e contra argumentos, o
afeto pode pouco. Encolhe-se, resiste, desorienta-se, e quando
finalmente sucumbe à dúvida e à hesitação é porque já começou a sofrer
seriamente. A tendência do afeto moral, quando em seu seio surgem
movimentos “críticos” é acomodá-los nos limites do que o costume
suporta. Quando surge a “revolução”, já estamos diante de um corpo em
agonia. Uma idéia estranha a este tipo de vida moral é a idéia da
perfeição ou perfectibilidade moral6.
Por outro lado, quando fala de si mesmo, ele tende a contemplar o
acumulo de experiência vivida, daí ser mais dado à narrativa do que a
controvérsia conceitual e também (o que a vida moral racionalista
moderna normalmente vê com horror) prefere ver no passado algo a ser
tomado como referencia e jamais como resto a ser descartado. Ao
contrário do racionalismo moral, que pensa a si mesmo como fundador, a
partir da razão moral, de um processo “científico” ou absoluto de
determinação do Bem, para além de qualquer dúvida razoável, o afeto
moral, quando pensa a si mesmo, com toda a dificuldade de ver o
invisível que é composto de pequenos detalhes infinitos, tende a
perceber traços não geométricos, comportamentos matizados, medos,
angustias e alegrias acumuladas contra o pano de fundo de uma história
da experiência e não da consciência.
Todavia,
seria um erro supor que o processo histórico que acabou por realizar o
projeto racionalista moderno, na sua face teórica e instrumental, não
seja uma face da nossa cultura ou do nosso hábito. Somos seres do
pensamento (o pensamento é parte constitutiva de nosso hábito moral
ancestral) e a vida do racionalismo moral não “caiu do céu”.
Construiu-se como parte essencial do acúmulo de poder burocrático e
filosófico que o advento da tecno-ciência e do moderno Estado de direito
estabeleceu no seio da sociedade européia ocidental a partir do
Renascimento. Não podemos nos deter nesta questão neste momento, mas a
crença na capacidade humana de se auto-determinar a partir de suas
ferramentas racionais e técnicas, fruto objetivo e subjetivo deste mesmo
acúmulo, compõe o cenário concreto no qual se dá a tendência a busca de
re-invenção da vida moral, típica do hábito de reflexão erguido à
categoria de forma ideal da vida moral (Oakeshott, 1996). Vejamos este
segundo tipo de vida moral, tipo este que, pelo excesso com o qual se
manifesta desde o final da Idade Média, constitui propriamente a subida
da Torre de Babel nos termos deste pequeno comentário filosófico.
Segunda forma de vida moral:
O hábito reflexivo ou racionalismo moral
A segunda forma de vida moral, que consideraremos agora, pode ser compreendida como, em muitos aspectos, o oposto da primeira. Neste, a atividade é determinada não pelo hábito de comportamento, mas pela aplicação reflexiva do critério moral. Ele assume duas variedades comuns: a busca auto-consciente de ideais morais, e a observância reflexiva de regras morais (Oakeshott, 1991d, p. 472).7
Esta
forma de vida se caracteriza por se apresentar como um projeto de
determinação racional do comportamento moral. Movimentamo-nos nele
através de uma teia de enunciados abstratos que visam organizar a vida.
Nessa forma de ação moral o centro é a definição teórica e ideal da
norma. Controvérsias são comuns nesse hábito de reflexão e normalmente
quando em ação, a idéia de que estamos diante de problemas morais a
serem resolvidos é dominante. Ao contrário do afeto moral, que se move
em meio a atos “cegos”, a reflexão moral quer ver o fundamento de cada
comportamento. A moral pensada costuma criticar e buscar continuo
aperfeiçoamento dos padrões de conduta, por isso tem por natureza
questionar e re-fazer cada percurso, daí sua tendência a produzir
hesitação e demanda de certeza consciente no momento da escolha moral.
No hábito de afeto também existe a escolha, mas este momento se insere
numa rede de detalhes cotidianos que mais se assemelham a uma dança
continua do que a uma vida administrada e consciente. Este esforço
racional produz uma das principais características dessa vida moral: a
afirmação de que a ação humana ao longo do tempo seja passível de
redução à categoria de design consciente e redutível a fórmulas. Este
traço implica toda a “revolução racionalista moderna” que atingirá
também o espaço político. Em termos especificamente morais, esse viés
projeta uma mania pela perfeição e um horror à inevitável imperfeição do
hábito do afeto ou do comportamento, assim como à sua constante
dificuldade em expressar-se em conceitos éticos. Daí Oakeshott afirmar
que temos que ser “filósofos” para acompanharmos os problemas morais e
suas soluções pensadas. O processo implicará necessariamente uma
“constante análise do comportamento”, palavras de Oakeshott, tendendo a
inibir a própria sensibilidade moral. Este processo é um dos focos da
misfortune à qual ele faz referencia ao final da sua Torre de Babel
filosófica. No lugar da sensibilidade moral constituída ancestralmente e
em grande parte inconsciente, a filosofia moral racionalista buscará
uma prática moral definida a partir de sua necessária vocação para a
perfeição abstrata do comportamento humano. O “idealismo neurótico”
facilmente se revela obsessivo e como toda mania de perfeição, deságua
em desilusão: o homem não é o que ele deveria ser em termos morais
racionais e grande sofrimento advém da tentativa de constranger a
experiência cotidiana cheia de pequenas tentativas e grandes fracassos
às paredes das “teorias de gabinete”8.
Para Oakeshott, apesar de ser evidentemente parte saudável de nosso
hábito de conduta pensarmos no que fazemos, é o que fazemos que nos move
moralmente e não a tentativa agoniada de justificar o que fazemos. Esta
questão tem profundas conseqüências para a modernidade que busca
transformar a natural vocação humana para abstração em matéria e
substancia última do cotidiano real.
A vertigem
A energia moral de nossa civilização tem sido aplicada por muitos séculos principalmente (apesar de não exclusivamente) a construir uma Torre de Babel: e em um mundo em vertigem com tantos ideais morais, sabemos menos como nos comportarmos em público e na vida privada do que sabíamos antes (Oakeshott, 1991d, p. 481).
Uma
vida moral sadia terá sempre a presença das duas formas de vida moral
descritas acima. Mesmo que indivíduos pensem em ideais, o hábito jamais
se deixará prender pelas quimeras dos modelos racionais de perfeição. As
hesitações teóricas não assustam almas que pressentem o sentido dos
seus atos no cotidiano no qual estão inseridas. E isso nada tem a ver
com a sensação de estarem em contato com a perfeição: aqui reside a
força, e não a fraqueza, da vida moral baseada no hábito do afeto.
Todavia, o risco de desintegração é permanente à medida em que a pressão
por fórmulas de ideais morais avança sobre o tecido do afeto. O
racionalismo moral respira bem em ambientes asfixiados por crises,
sente-se em casa diante de uma aporia moral formulada em enunciados
claros e distintos. Os seres humanos normalmente pensam e sonham com
soluções para os dramas da vida (porque a vida é essencialmente infeliz e
fracassada com o passar do tempo). O ideal moral formulado
geometricamente é a forma que este sonho assume ao se submeter à crença
no modo racionalista da vida. Os viciados no racionalismo vêem as
aporias como o ambiente natural da vida moral, daí o colapso moral ser
visto como chance para criar novas fórmulas (as rupturas são vistas como
qualidade intrínseca à vida moral bem vivida), enquanto que o hábito do
afeto vive esse colapso como dor e busca nos recursos ancestrais a
possibilidade de retorno ao vivenciado que garante a continuidade do
cotidiano reconhecido como seu. Não que não haja transformações, mas
estas são vividas como um novo passo desenvolvido numa dança longamente
experimentada (e infinita, que ninguém pressupõe saber os limites) e em
harmonia com o restante dos movimentos. Nossa sociedade tem sido marcada
nos últimos 500 anos por um viés racionalista, tanto em moral como em
política. Uma vida assim estabelecida nunca está de fato estabelecida
porque caminha sobre idéias e crítica de idéias, e esse movimento não
funda a consistência prática do hábito de afeto ou comportamento.
Oakeshott descreve esse fenômeno como uma tendência a viver a custas de
“indivíduos que interpretam o mapa perdido do hábito moral”. Em lugar de
práticas que reúnem em si experiência, fracasso e sucesso ancestrais,
vivemos de opiniões e definições formais, por isso ele nos compara a
solitários que “exageram as qualidades dos poucos amigos que têm” &–
os “poucos amigos” aqui são nossas parcas fórmulas de sucesso moral.
Supervalorizamos nossas definições morais, supondo que elas de fato
tecem o mundo da liberdade e dos atos morais. Esse delírio nada mais
funda do que uma vida insegura, hesitante, viciada em grandes
articulações que tomam o lugar do afeto instalado no comportamento
“adaptado”. Necessariamente vivemos sob a aura da instabilidade e
abstração na vida moral racionalista, buscando em equações formais como
enfrentar as urgências de uma vida que quase nunca é administrável pelas
abstrações da Razão, a menos quando, pela violência de alguma espécie
de “fascismo do Bem”, agredimos o acúmulo da experiência humana de
imperfeição da carne, testada pelos absurdos que caracteriza a vida
humana real. O passado europeu é um passado de crises de civilizações,
nossa história nos lança, pelo vácuo de tradições destruídas, a busca de
definir racionalmente o Bem continuamente, com o intuito de fundar um
mundo moral. Parte desse “hábito de crise” advém da própria crise
helênica que nos fundou como cultura filosófica. Todavia, se os restos
de Jerusalém e Atenas se reuniam no cristianismo durante cerca de 2000
anos, com o advento da modernidade esse lento processo criador de
comportamentos e afetos locais foi dilacerado pelo poder burocrático do
Estado moderno e pela velocidade da indústria da vida cientifica. Se nós
sonhávamos com o Bem claro e distinto ou com uma moral
experimentalmente fundada, acordamos numa cultura de crise como ideal de
vida, e mais do que isso, como objeto de culto. Ter no racionalismo
moral o lócus de valor da vida moral é um erro. Típico de quem pensa
orgulhosamente ter descoberto finalmente a forma definitiva do Bem. E
como afirma Oakeshott no fechamento de sua Torre de Babel filosófica, “E
o único propósito desta investigação de nossa difícil situação é
revelar a consciência corrupta, o auto-engano, que nos reconcilia com
nossa desgraça” (Oakeshott, 1991d, p. 487).
A
vertigem é o objetivo deste ensaio. A obsessão pela perfeição como
operação absoluta da ação moral é uma desgraça que marca a vida de
homens e mulheres assolados por conceitos. A esta altura, o ideal de
perfeição funda o inferno.
O modo literário
Meu Deus, como amo a moda.Madame de Sévigné.
O
segundo ensaio é uma paródia, pelo menos na sua parte 3, que aqui nos
interessa. Trata-se de uma história que descreve a personalidade
babeliana em ação, uma espécie de ensaio de psicologia social mapeando
comportamentos obcecados pelo direito da felicidade. Ele é aberto com a
descrição da atmosfera cotidiana em Babel: cidade de “todas as
liberdades imagináveis”, sua população é trabalhadora, mas não heróica. A
movimentação é típica da vida urbana, marcada pela busca incessante da
realização das satisfações e necessidades. Vale salientar que desejar
algo não necessariamente passa pela falta que este algo faz, mas pela
humilhação imaginária de que outros desfrutam daquilo que você não tem.
Veremos que este tema das necessidades e satisfações se constituirá numa
litânia em Babel. A vulgaridade, traço marcante de uma vida que se vê
maravilhosamente digna na busca da satisfação, é marca da alma
babeliana. Nemrod, líder jovem e cheio de idéias, criador do“projeto
social Babel”, é um típico babeliano, e neste sentidoé um líder
legítimo. Os babelianos, como reza em toda vulgaridade, acreditavam em
tudo que sustentasse cosmicamente seu direito à dignidade das suas
necessidades e satisfações. Um traço importante diretamente ligado à
chave religiosa é a “teologia babeliana” que fatalmente assumirá
contornos de “nova teologia” nos termos de Oakeshott. Deus é visto por
esses “novos teólogos” como um usurpador cheio de privilégios e eles,
babelianos, como desprivilegiados, um termo com grande impacto semântico
nessa gloriosa cidade. “Um mundo sem inverno”, como descreve Oakeshott,
“rios de vinhos”, uma natureza que respondeàs nossas infinitas
necessidades com infinitas satisfações, matriz mítica do mundo a ser
construído pela ciência baconiana de Nova Atlântida (Oakeshott, 1996).
Sua dignidade de babelianos exige um reconhecimento mais radical. Pois quem é o verdadeiro criador de sua frustração? Quem é esse que tem os meios para pôr fim às sua privação, para dar-lhes uma ilimitada profusão de satisfações, e não o faz? Não é esse mesquinho Deus...? Não somos nós as vítimas inocentes de uma conspiração cósmica? Ou, se não isso, ao menos vítimas de uma criminosa injustiça distributiva? (Oakeshott, 2003, p. 266).
Palavras
de Nemrod à sua cidade, resumo da teologia em questão. A guerra santa
pelos direitos dos babelianos estava lançada. E aqui a sutileza da
questão deve ser levada a sério:
lembremos que os babelianos somos nós. Nunca é suficiente a redundância
em se tratando do caráter aparentemente pouco pretensioso de nossa
cidade infeliz. Oakeshott põe
no foco de sua Babel os descendentes de Adão e Eva na sua forma de
revolta banal contra a evidente infelicidade da vida. Com isso ele não
quer, como alguns críticos babelianos mal informados suporiam, negar o
direito de superarmos a dor no que for possível, ele quer sim apontar o
caráter maldito desse processo quando desprovido da consciência do “vôo do corvo” que nos acompanha9:
o que caracteriza a “nova Babel” é ser uma construção racionalista, e é
este o núcleo da crítica que Oakeshott faz nesse seu segundo ensaio
dedicado à nossa ancestralidade babeliana. O mito em si descreve o
necessário fracasso de toda empreitada humana de perfeição (assaltar o
paraíso) e não pretende desqualificar a realidade da infelicidade
irredutível que nos esmaga, nem tampouco nossa inglória e perene luta
contra os elementos dessa infelicidade natural.
Apesar
de fiéis crentes nos modos racionais de definição moral (substância do
“Projeto Social Babel), os babelianos na sua vulgaridade simples
“preferiam chegar a viajar”. Como todo preguiçoso, gosta do modo mágico
de viver. Oakeshott percebe o caráter mágico latente no modo
racionalista que tende à abstração (aqui os dois ensaios se tocam)
criado a partir da experiência de poder burocrático e técnico desde o
Renascimento, por isso a tendência inexorável à utopia, outro nome pra
fantasia e mágica: um mundo que não existe para homens que não existem,
derivado da fantasia humana que com a burocracia e racionalismo vamos
re-fundar a vida. A razão abstrata do racionalista é instrumento de
mágica (grande mentira elegante da modernidade) querendo re-fundar a
forma do mundo, o corvo do racionalismo encontra o corvo da bruxa no
mundo grotesco da feitiçaria. Filhos de Fausto, só quem delira pode não
perceber o escândalo que é um homem, que imagina ter alguma relação
ontológica com o paraíso: o sofrimento, o fracasso, a agonia são
condições de possibilidade da realidade, o que não significa que sejam
desejáveis. Só o racionalista faria essa dedução: reconheço como
verdade, logo é desejável. Uma decisão acuada contra a falta de
alternativas não implica necessariamente escolha perfeita.
A
indolência individualista dos babelianos foi paulatinamente vencida
pela cobiça social. Os caprichos casados com a retórica social, como diz
Oakeshott, sustentarão os grandes ideais a partir de agora. Os efeitos
serão lentamente sentidos, assim como os de uma guerra.
A alternativa social
Os
babelianos se transformaram em atores de um bem maior, e a imagem dos
“tratores na linha do horizonte sob o sol” os emocionava diante da
tarefa libertadora que tinham pela frente. Mas projetos grandiosos como
esses não afetam apenas grandes agendas. O detalhe também adoece: as
manias típicas das “certezas sociais” invadem a vida, dos cabelos em
forma de torre, aos bolos infantis e brinquedos em forma de torre, aos
adesivos de carro (“Avante torre”, “Construção para o paraíso do povo”),
Bife à la Tour, aos nomes das meninas e dos meninos com sons de torre.
Todavia, esses pequenos detalhes logo deram lugar à séria santidade do
projeto social: um novo sistema educacional era necessário, novas
disciplinas com conteúdos tecnológicos específicos para a tarefa (TT,
Tecnologia da Torre), assim como disciplinas com teor mais
especificamente formativo a fim de desconstruir atitudes pouco
afirmativas com relação às necessidades que um projeto coletivo como
esse demanda das almas. Almas céticas com relação à santidade do projeto
social da torre deveriam ser recuperadas ou neutralizadas. Fórmulas
publicitárias movidas pela certeza de quem sabe representar o Bem caíram
como uma tempestade sobre as cabeças descrentes e logo elas não mais
existiam. Segundo Oakeshott, um “famoso relatório” chamava atenção para
“as habilidades e versatilidade exigidas pelo atual compromisso do povo
de Babel”. O conhecimento e arte logo se viram diante da necessidade
moral de se fazerem “sociais”: a arte evoluiu em direção ao design
industrial necessário para a torre. As práticas lingüísticas também
sentiram o impacto da nova certeza, os substantivos concretos e
abstratos degeneraram na pobreza de um qualificativo único: o que não é
social (isto é, pró-torre) é mal. Os jornalistas, movidos pela segurança
de quem constrói a nova cidadania, optaram por uma mídia mais
“democrática” (a serviço dos interesses daqueles que marcham juntos em
direção ao paraíso), isto é, “boletins diários” informavam a população
sobre os avanços dos trabalhos. A real diversidade da vida (aquela que
não responde ao design obsessivo da saúde psico-social) asfixiava sob as
botas da construção social da felicidade.
A psicologia da torre
Velhas
dúvidas existenciais não existiriam mais. A felicidade social devia ser
suficiente para eliminar o sofrimento das almas que antes estavam
acostumadas à evidente fratura do sentido das coisas, aos excessos do
sentimento de serem esmagadas pela vida imperfeita. Uma nova saúde total
surgia no horizonte. Em tempos onde a mania de saúde impera, a
esperança se aloja na doença: um novo tipo de melancolia surgiu, nos
sonhos, nas falhas de memórias, nos rituais obsessivos. Babel se dividiu
entre a engenharia da torre e a psiquiatria da torre. A nova teologia
cunhava o novo conceito de pecado: ser contra a torre. Medalhas nas
escolas estimulavam aos alunos a saberem o essencial para a nova vida:
amar a torre. Sociólogos, antropólogos, filósofos e psicólogos se
lançaram à tarefa de estudar os “novos estilos de vida”, as
afetividades, as inseguranças. Grupos de estudo davam espaço às pessoas
para construírem a passagem afetiva e cognitiva inevitável ao paraíso. O
programa de educação psico-social para o afeto definitivo da felicidade
crescia entre os mais jovens. Muitas pessoas, muitos de nós,
descobriram que não sabiam o que fariam quando tivesse a eternidade de
perfeição pela frente. A angústia diante dessa nova descoberta
desarticulou muito de nós. Não queríamos perceber que quando não resta
dúvida sobre o sentido da vida, ela já perdeu qualquer sentido. A fúria
da certeza nos invadia a cada hora que passava. Pais desconfiavam do
amor dos filhos diante da paixão pela torre: minha filha me ajudará a
subir as escadas ou terá pressa de ser feliz no paraíso e me esquecerá
na subida? Filhos perceberam que os pais, cansados pela labuta na
construção do paraíso, não seriam aqueles a realizarem o “futuro
melhor”, e com isso, descobriram a liberdade da idade: os mais velhos
revelaram sua impossibilidade de chegar ao futuro (o céu) e com isso
ficaram nus diante dos mais jovens, que riam de sua miséria fisiológica.
As casas desapareceram à medida que seus tijolos, os últimos de Babel,
eram transportados para a insaciável construção do futuro parque da
felicidade.
A impaciência
Ao
final, exaustos, sem família, sem amigos e sem amor, mas com a certeza
daqueles que pensam ter direitos à felicidade, nossos conterrâneos,
foram acometidos de uma desconfiança atroz. Com a demora de chegarmos ao
céu e encararmos nosso avarento criador &– como diziam os novos
teólogos &–, acabamos por sucumbir à pressa. Nemrod, diante da
interminável torre, não mais descia de seu topo que mergulhava a cada
dia no vazio e no silêncio dos céus, e em meio à solidão de quem
enlouquece diante da indiferença do universo &– fato indiscutível da
vida humana &–, falava com seus fantasmas. Os babelianos começaram a
suspeitar que seu líder os traia com Deus e, sem mais respeitar os
detalhados planos organizados pela brigadas de segurança para a subida
gloriosa da torre invadiram de uma só vez a majestosa construção do
futuro perfeito. Imediatamente a construção tremeu, e em meio aos ranger
dos tijolos, os corpos cediam ao peso dos outros corpos e dos tijolos,
esmagando as almas que ali um dia habitaram.
O futuro
Muitos
séculos depois, um deserto tomou conta do lugar onde antes existia a
gloriosa Babel. Lagartos e ratos caminhavam livres e felizes. Como nos
diz Oakeshott, ao invés de construirmos nossas belas casas nos jardins
dos campos elíseos, “logramos apenas ampliar as fronteiras do inferno”.
Relatórios recentes dizem que é possível perceber, como numa miragem, o
fantasma de um antigo babeliano, triste, sentadoà janela de sua casa,
contemplando sua herança.
Ah, isto me volta à memória como volta o corvo à
casa infectada, prenunciando mau agouro...
William Shakespeare, Otelo.
Referências
Burke, E. (2003). Reflections on the revolution in France. New Haven: Yale University Press. [ Links ]
Oakeshott,
M. (1991a). The masses in representative democracy. In M. Oakeshott,
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politics and other essays (pp. 407-437). Indianapolis: Liberty Fund
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politics and other essays (pp. 5-42). Indianapolis: Liberty Fund.
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M. (1991d). The Tower of Babel. In M. Oakeshott, Rationalism in
politics and other essays (pp. 465-487). Indianapolis: Liberty Fund.
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ensaios (pp. 249-284). Rio de Janeiro: Liberty Classics Topbooks.
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Passmore, J. (2004). A perfectibilidade do homem. Rio de Janeiro: Liberty Fund/Topbooks. [ Links ]
Pojman, L. P. (2000). The moral life. Oxford: Oxford University Press. [ Links ]
Shakespeare, W. (2007). Otelo. São Paulo: L&PM Pocket. [ Links ]
1 Grifos do autor.
2
Nesses três ensaios Oakeshott situa no Renascimento (final da Idade
Média e inicio da Idade Moderna) uma grande mudança de comportamento,
hábitos, idéias, afetos e estrutura acumulativa de poder físico
técnico-burocrático que marcarão muitos dos problemas que caracterizam
os aspectos dramáticos da modernidade.
3 Oakeshott não dá esse exemplo.
4 Em francês no original.
5
Talvez pudéssemos fazer uma aproximação produtiva entre este hábito de
finesse e o conhecimento pelo coração ao qual faz referencia o filósofo
francês do século XVII Blaise Pascal (1963).
6
O conceito de perfectibilidade é um tema central na obra de Oakeshott,
assim como de todos os filósofos que pensam a virada humanista
renascentista como raiz de grande parte dos dramas modernos (Passmore,
2004).
7 Grifos do autor.
8 Esta expressão closet theories é tipicamente burkeana (Burke, 2003).
9
Quando falamos aqui em “vôo do corvo” nos referimos ao viés
racionalista da mania de perfeição que caracteriza a segunda forma de
vida moral descrita no modo filosófico acima. O tom monótono retilíneo e
solitário de alguém que habita uma floresta gelada.
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