BLOG ORLANDO TAMBOSI
Numa sociedade tão marcadamente racializada, na qual se fala o tempo todo em “história negra”, “música negra”, “arte negra”, “literatura negra” etc., parece que a única entidade interditada pelos meios de comunicação é o crime racial cometido por negros contra representantes de outras etnias. Flavio Gordon para a Gazeta do Povo:
Faz pouco mais de três meses que, em artigo que lhe rendeu ataques virulentos,
o antropólogo Antonio Risério denunciou na Folha de S.Paulo, com uma
pletora de fatos, o aumento vertiginoso do racismo de negros contra não
negros nos EUA e no Brasil. Partindo da própria redação do jornal
paulistano – uma espécie de quartel-general de extremistas identitários
–, choveram pedidos pela cabeça do articulista. Acovardado, o jornal
concedeu espaço generoso para os artífices da campanha de assassinato de
reputação movida contra Risério, mas, com a falsa desculpa de que o
assunto estava encerrado, negou à vítima o direito de se defender.
Rasgava-se, assim, a máscara de pluralista com que a Folha pretendia
esconder a sua carranca autoritária e pró-identitária.
Assim como o meu colega antropólogo, venho analisando o fenômeno do neorracismo identitário já há alguns anos. Daí que, na minha coluna de 19 de janeiro, eu tenha comentado o seguinte sobre o caso:
“Risério
tem razão. O que temos visto surgir nos EUA – e ao contrário do que
alegam os extremistas identitários, que acusam o autor da prática de
cherry-picking – é quase uma epidemia de ataques racistas cometidos por
‘negros’ contra membros de outras etnias (...) Contrariamente ao que
aconteceria se os papéis de vítima e agressor se invertessem, o fenômeno
não causa escândalo nem indignação. Frequentemente, nem sequer é
noticiado. Tudo se passa como se tivéssemos, nesse caso, uma espécie de
racismo permitido.”
Numa
sociedade tão marcadamente racializada, na qual se fala o tempo todo em
“história negra”, “música negra”, “arte negra”, “literatura negra”
etc., parece que a única entidade interditada pelos meios de comunicação
é o crime racial cometido por negros contra representantes de outras
etnias
“O racismo permitido”,
aliás, é o título de um outro artigo meu, no qual mostro que o discurso
de ódio contra brancos tornou-se mainstream na cultura americana
contemporânea, e que dele decorrem eventos cada vez mais frequentes – e
tanto mais ocultados pela mainstream media – de violência racial
cometida por supremacistas negros. Também no artigo “A violência racial
normalizada” comento sobre o livro White Girl Bleed a Lot: The Return of Race Riots to America and How the Media Ignore It,
em que o jornalista Colin Flaherty elenca e analisa a ocorrência de
centenas de ataques perpetrados por negros contra brancos e
representantes de outras etnias em várias cidades norte-americanas ao
longo dos últimos anos.
Contrastando
vídeos enviados ao YouTube e depoimentos de vítimas com a cobertura
jornalística e o discurso oficial das autoridades, Flaherty denuncia a
ocultação deliberada do componente racial por parte da mídia e do poder
público. Numa sociedade tão marcadamente racializada, na qual se fala o
tempo todo em “história negra”, “música negra”, “arte negra”,
“literatura negra” etc., parece que a única entidade interditada pelos
meios de comunicação é o crime racial cometido por negros contra
representantes de outras etnias.
O
duplo padrão fica ainda mais evidente quanto pensamos nos muitos casos
em que, atuando como mera porta-voz do movimento identitário, e a fim de
sedimentar na opinião pública a imagem dos negros como vítimas
quintessenciais, a imprensa simplesmente inventou racismo onde não havia
(veja, sobre o ponto, essa minha coluna de julho de 2020).
Um caso emblemático é uma matéria publicada no portal G1 em 12 de
setembro de 2014, em cuja chamada se lê: “Mais um negro é morto pela
polícia em NY”.
Lendo
o texto da reportagem, descobre-se que um homem negro esfaqueara um
jovem judeu dentro de uma sinagoga no Brooklyn. Recusando-se a entregar a
faca e lançando-se sobre os policiais, o agressor acabou baleado, vindo
a falecer no hospital. Ou seja: embora os policiais tenham agido
primeiro em defesa da vítima esfaqueada, e, em seguida, em legítima
defesa da própria vida, os militantes da redação julgaram conveniente
inverter as posições de vítima e agressor, dando ênfase desnecessária ao
componente racial que nada tinha a ver com o caso, e induzindo o leitor
– mediante o uso do pronome indefinido “mais” – a concluir que a
polícia de Nova York é useira e vezeira em matar negros por motivações
racistas. Eis um primor de desinformação em prol de uma agenda política.
Com
tudo isso em mente, e já acostumado a buscar a informação verdadeira
por detrás das barricadas montadas pelos gatekeepers do “consórcio”
midiático, não me espantei quando alguns poucos jornalistas
independentes – a exemplo de Andy Ngô
– começaram a publicar as mensagens racistas postadas por Frank James, o
supremacista negro e simpatizante do Black Lives Matter (BLM)
responsável pelo mais recente atentado terrorista no metrô de Nova York.
Mensagens racistas como essa: “Ó, Jesus Negro, por favor mate todos os
brancos”. Ou essa: “Os brancos filhos da puta que eu quero matar, sabe?,
quero muito matá-los por serem brancos”. Ou ainda essa: “Brancos e
negros não devem manter nenhum contato. Não devem sequer ocupar o mesmo
hemisfério”.
Obviamente,
o “consórcio” midiático dedicou-se ao máximo à missão de omitir o
componente racial do crime, tanto quanto, nos casos em que a vítima é
negra, se empenha em introduzir o componente racial mesmo quando
inexiste. O portal G1,
por exemplo, até fez referências a algumas postagens de James,
reduzindo-as, todavia, a menções aos “sem-teto” e ao “prefeito de Nova
York”. Já a CNN Brasil tratou de dissolver a especificidade racial do caso na afirmação genérica sobre um aumento da criminalidade em Nova York. E o Poder 360
foi ainda mais longe, virando a realidade de ponta-cabeça e descrevendo
as mensagens racistas do terrorista como “vídeos críticos ao racismo”.
Bem, se clamar a Deus pela morte de todos os brancos é uma crítica ao
racismo, nem quero imaginar como seria o seu elogio.
Mas,
retomando o fio, digo que não me espantei com o evento porque o ataque
cometido por James é apenas mais um episódio numa série de casos muito
recentes, todos motivados pela mesma ideologia racista. Recordemos
apenas dois deles.
Em
novembro de 2021, seis pessoas foram mortas num desfile natalino em
Waukesha, Wisconsin, quando o terrorista Darrell Edward Brooks jogou o
seu carro em cima da multidão de espectadores. As redes sociais de Brooks
também eram repletas de mensagens de nacionalismo negro, endosso do
movimento BLM e ofensas a brancos e judeus. Em postagem de novembro de
2015, o terrorista chegava a reproduzir um pretenso discurso de Adolf
Hitler acompanhado do seguinte comentário: “Hitler sabia quem eram os
verdadeiros judeus”.
Em
abril de 2021, um homem jogou o seu veículo contra uma barreira
policial montada em frente ao Capitólio, em Washington D.C. Ato
contínuo, o agressor partiu com uma faca em punho para cima dos dois
policiais em serviço, ferindo um deles mortalmente antes de ser abatido.
O homem era Noah Green, militante da Nação do Islã, movimento supremacista negro liderado pelo notório antissemita Louis Farrakhan, tido por Green como seu “pai espiritual”.
Nada
disso é obra do acaso. O discurso de ódio racial antibranco tem sido
propagado diariamente dentro das escolas e universidades americanas. Uma
vez assimilado por mentes doentias, ou já inclinadas à criminalidade,
não surpreende que, mais dia menos dia, resulte na prática de violência
racista. E não são apenas negros ou militantes do movimento negro os
únicos suscetíveis a introjetar essa perversa lógica racialista e a
nutrir um sentimento de vingança.
Muitos
no Brasil hão de lembrar do adolescente sul-coreano Cho Seung-hui, que,
em abril de 2007, matou 32 pessoas e feriu outras 25 no Instituto
Politécnico da Virgínia, no episódio conhecido como o “Massacre de
Virginia Tech”. Como é natural nesses casos, o estado de choque inicial,
subsequente à tragédia, deu lugar à busca por explicações. Quem era Cho
Seung-hui? O que pode tê-lo levado a praticar aquela monstruosidade?
Teria sido possível, antes da chacina, notar algum indício de psicopatia
a partir do comportamento habitual do atirador?
Naquele contexto, foram divulgadas peças teatrais escritas por Cho para suas aulas de inglês.
O conteúdo era perturbador: uma mãe brandindo uma serra elétrica, um
garoto tentando assassinar seu padrasto com uma barra de cereal
empurrada em sua garganta, adolescentes imaginando como matar o
professor que os havia estuprado, e assim por diante. Depois da
divulgação do material, surgiram questionamentos sobre o porquê de a
escola não ter percebido, já naquele momento, a existência de um
distúrbio psíquico grave no aluno. Um tal diagnóstico poderia ter
evitado o massacre?
Muitos,
dizia eu, se lembram de Cho Seung-hui. Mas quase ninguém ouviu falar à
época de Nikki Giovanni, professora de Cho na Virginia Tech. Por ser uma
das mais respeitadas professoras de Literatura Inglesa da escola,
Giovanni foi escolhida para proferir o discurso em homenagem às vítimas
do massacre. “Nós somos Virginia Tech!” – bradou a professora, diante de
uma plateia emocionada.
Além
de professora de inglês, Nikki Giovanni é poetisa e militante histórica
do movimento negro, em sua vertente mais radical. No antebraço
esquerdo, exibe uma tatuagem com os dizeres Thug Life (algo
como “vida bandida”), feita em homenagem ao rapper Tupac Shakur,
assassinado por outros rappers num tiroteio em 1997. Para Giovanni,
Shakur (um gangster a quem ela chama carinhosamente de “Pac”) seria um
mártir do movimento pelos direitos civis, situado no mesmo nível de
Martin Luther King ou Emmett Till.
Em
vários de seus poemas, a professora de Cho Seung-hui dedica-se a
incitar o ódio racial contra brancos e judeus. Num deles, por exemplo,
intitulado The True Import of Present Dialog, Black vs. Negro,
lemos o seguinte: “Não temos de provar que somos capazes de morrer.
Temos de provar que somos capazes de matar (...) ‘Crioulo’ [nigger],
você sabe matar? Você sabe matar um branquelo [honkie], ‘crioulo’? (...)
Você sabe derramar sangue? É capaz de envenenar? Sabe esfaquear um
judeu? Sabe matar, hein? (...) Você sabe atropelar um protestante com o
seu El Dorado 68? (...) Você sabe urinar numa cabeça loira? Sabe
cortá-la fora?”
Note-se
que o estilo é curiosamente parecido com aquele utilizado por Cho
Seung-hui na fala de um de seus personagens: “Devo matar Dick. Devo
matar Dick. Dick deve morrer. Matar Dick (...) Você acha que eu não sei
matá-lo, Dick?” Noutro poema,
Giovanni celebra o espírito revolucionário, imaginando um novo
brinquedo para crianças negras, um kit chamado “Burn Baby”, que as
ensinaria a montar um coquetel Molotov. Noutro ainda,
a poetisa abre o coração: “Ocorreu-me que, talvez, eu não deva mais
escrever, mas limpar a minha arma e conferir o meu estoque de
querosene”.
Pergunto-me
quantas vezes o atirador Cho Seung-hui terá sido exposto na Virginia
Tech a esse tipo de retórica? Quantas vezes, por exemplo, terá ouvido
falar em “privilégio branco”? Difícil saber ao certo, mas uma rápida consulta no website da escola revela que, só ali, a expressão aparece mais de 440 vezes.
Obviamente,
os poemas de Nikki Giovanni não podem ser tomados como causa imediata
do massacre, perpetrado por alguém com claros distúrbios mentais. Mas é
certo também que o adolescente sul-coreano encontrou nesse e em outros
discursos similares um combustível a mais para o seu ódio. Como observou sobre o caso o professor Olavo de Carvalho,
então o único na imprensa brasileira a destacar esse aspecto do
problema: “Enfie todo esse ódio na mente de um maluco e ele só não sairá
matando gente se estiver dopado”.
Ora,
se nada tem a ver com esse tipo de violência a ideologia radical de
Giovanni e companheiros de militância, menos ainda o teriam o sistema
capitalista, o conservadorismo, a fé cristã, o comércio de armas, Donald
Trump ou Jair Bolsonaro, tradicionais bodes expiatórios recorrentemente
lembrados por ocasião de episódios como o da Virginia Tech. Afinal, a
relação de causa e efeito é bem mais direta no primeiro que no segundo
caso. É muito mais difícil caracterizar os atentados acima mencionados
como, digamos, uma reação às “injustiças sociais” inerentes ao sistema
capitalista do que como resposta positiva aos apelos poéticos de uma
Nikki Giovanni.
“Você
sabe matar um branquelo, ‘crioulo’?” – pergunta Giovanni. E Frank James
responde afirmativamente: “Sim, senhora”. “Você sabe atropelar um
protestante com o seu El Dorado 68?” – torna a perguntar Giovanni. E,
dessa vez, é Darrell Edward Brooks quem responde: “Sim, eu sei”. “Sabe
esfaquear um judeu?” E responde agora o terrorista da sinagoga no
Brooklin: “Sim, professora. Mereço nota dez”.
Não
é por acaso que, muito embora nossa imprensa continue agindo como se
estivéssemos em pleno Mississippi da década de 1920, Walter Williams, o
brilhante economista negro falecido em 2020, tenha afirmado
categoricamente que, hoje, “a maioria dos ataques raciais é cometida por negros”.
Compreende-se, uma vez que, nos dias de hoje, enquanto um discurso
racista antinegro seria amplamente exposto e universalmente repudiado – e
assim deve ser –, a retórica antibranca é não apenas acobertada, como
incentivada e naturalizada. Nikki Giovanni não apenas não foi cancelada,
como continua louvada por celebridades do quilate de uma Oprah Winfrey.
Como
se vê, o racismo estrutural talvez exista mesmo. Mas, ao contrário do
que querem nos fazer crer os seus propagandistas, segundo quem os negros
continuam sendo suas principais vítimas, sua natureza reside
precisamente nessa retórica contemporânea de ódio antibranco reproduzida
rotineiramente, como se natural fosse, em escolas, universidades e
redações de jornal. Se o conceito tem alguma materialidade – se, em
suma, é algo além de uma ideia abstrata brotada da imaginação de
intelectuais-ativistas –, é em casos de violência racial explícita, a
exemplo do atentado no metrô de Nova York, que ela deve ser buscada.
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