O cinismo monumental do governo da Rússia, ao dizer que vítimas ucranianas fazem parte de uma “encenação”, tem uma longa e terrível história. Vilma Gryzinski:
Homens
executados no meio da rua; o corpo de uma idosa ainda na bicicleta; um
porão com cinco cadáveres torturados; uma prefeita, o marido e o filho
fuzilados juntos, depois de ter dedos e braços quebrados; três mulheres
incineradas nuas; uma cova rasa aberta pelo legista local, antes de
fugir, tão grande que pode ser vista por imagens de satélite.
As
imagens e os relatos vindos de Bucha e outras localidades desocupadas
pelo exército russo parecem um filme de terror. Por mais que a
comparação seja um clichê, nesse caso ela é justificada pelos 410 corpos
já encontrados, uma atrocidade tão grande que Volodymyr Zelensky deixou
o bunker presidencial para visitar o lugar onde “a concentração do mal
baixou sobre nossa terra”.
O
governo russo, claro, desmente as imagens chocantes, mostrada por
jornalistas de órgãos confiáveis, e diz que tudo foi uma encenação.
Embaixadores russos chegaram a divulgar vídeos que mostram cadáveres “se
mexendo”. Exatamente o mesmo argumento usado no caso do bombardeiro da
maternidade de Mariupol, onde uma linda blogueira à véspera de dar à luz
foi acusada de ser uma atriz contratada para o papel de vítima.
Mais
terrível ainda é a perspectiva de que os massacres em Bucha e lugares
vizinhos não sejam uma exceção, um abuso de soldados frustrados,
famintos e furiosos por ter que desocupar áreas que consideravam
conquistadas.
“Bucha
não é um caso isolado. É um indicador de como a Rússia pretendia ocupar
e reprimir a Ucrânia”, escreveu no Telegraph o especialista em assuntos
militares russos Jack Watling.
A
ideia da punição coletiva, diz Watling, faz parte integrante do
comportamento de ocupantes russos, como aconteceu no Afeganistão, com o
bombardeio indiscriminado de aldeias inteiras, e na Síria.
Watling
recupera um vívido relatório enviado pelo diplomata britânico Beilby
Ason, que morreu quando era embaixador no Brasil, em 1925, descrevendo o
que viu acontecer durante a guerra civil russa. “O número de civis
inocentes brutalmente mortos pelos bolcheviques em Argo e outras cidades
nos Urais é de centenas; algumas dessas pessoas foram encontradas com
os olhos arrancados, outras sem nariz; jovens foram estupradas e, entre
outros, o bispo Andronick foi enterrado vivo em Perm enquanto 25 padres
foram fuzilados lá”.
O
mais notório crime de guerra cometido pelo regime soviético foi o
massacre de Katyn, o extermínio sistemático de 22 mil presos de guerra
da Polônia: oficiais do exército e da polícia, intelectuais,
professores, profissionais liberais, industriais, padres e outros
membros das elites pensantes.
O
massacre leva o nome da floresta perto da fronteira entre a Rússia e o
que é hoje a Belarus, onde os prisioneiros era executados com um tiro na
nuca pela NKVD, a polícia política, e jogados em covas coletivas.
Em
1941, depois que a Alemanha nazista rompeu o pacto Ribbentrop-Molotov
(mais apropriadamente o acordo Hitler-Stalin) e invadiu a União
Soviética, as covas com as vítimas do massacre transformaram-se num
instrumento de propaganda. Os nazistas chamaram especialistas
internacionais, inclusive um representante do governo polonês no exílio,
para investigar o crime hediondo.
A
situação era altamente sensível: de cúmplice de Hitler, o regime
stalinista tinha se transformado no único aliado capaz de resistir e
derrotar as tropas alemãs. O crime foi, de várias maneiras, abafado.
É
claro que os russos negaram tudo – e continuaram a negar durante todo o
tempo em que durou o comunismo. Só à véspera de seu fim, Mikhail
Gorbachev reconheceu a responsabilidade dos soviéticos pelo massacre e
pela “mentira de Katyn”, como ficou conhecida a campanha de décadas de
negação da verdade. Um ano depois, em 1991, ele renunciou e a URSS
acabou.
Vladimir
Putin fez uma abertura em relação à Polônia, consagrada em 2010 com uma
visita a Katyn e a promessa de construção de uma igreja ortodoxa no
local. A Duma, o parlamento russo, aprovou uma resolução nos seguintes
termos: “Documentos mantidos em segredo nos arquivos não apenas
revelaram a dimensão dessa horrível tragédia, mas também mostraram que o
crime de Katyn foi cometido por ordens diretas de Stálin e de outros
funcionários soviéticos”.
Entre
os documentos que vieram a público com o fim da URSS, consta o memorado
794B, uma carta de Lavrenti Beria, o monstruoso chefe da NKVD, a
Stalin, dizendo que os prisioneiros de guerra “continuam a fazer
agitação antissoviética e cada um deles somente espera a libertação para
aderir ativamente à luta contra o poder soviético” – no que não estava
errado.
Beria
foi minucioso ao relatar que nos campos de presos de guerra havia “14
736 ex-oficiais, funcionários do governo, proprietários de terra,
policiais, policiais militares, carcereiros e espiões”. Em
penitenciárias na Ucrânia e na Bielorrússia, eram mais 11 mil poloneses.
“Baseado
no fato de que são todos inimigos incorrigíveis do poder soviético”,
Beria propunha que fossem executados, sem nenhuma encenação judicial.
A diretiva foi assinada por Stálin, com o termo “Za” – a favor – e mais cinco integrantes da alta cúpula.
Em
1943, com a guerra já virando, forças soviéticas retomaram Smolensk, o
local do massacre, e Stálin criou uma força-tarefa “investigativa” para
atribuir a culpa aos alemães.
O
filme Katyn, do diretor polonês Andrzej Warda, reproduz de forma
ficcionalizada as circunstâncias do massacre. A cena mais comovente não é
das execuções em si, mostradas em toda a sua banalidade do mal, mas da
véspera de Natal em que os prisioneiros poloneses, já prevendo seu
destino, cantam Noite Feliz e a música paira sobre os alojamentos dos
quais seriam transportados para a morte.
Depois
do breve período em torno de 2010, figuras políticas russas voltaram a
negar o massacre. Alguns disseram que os documentos divulgados durante
os governos de Gorbachev e de Boris Yeltsin eram falsos. Vladimir
Soloviev, o apresentador de um programa de televisão onde hoje ameaça o
uso de armas nucleares contra “inimigos” da Rússia, disse que a Polônia é
que deveria pedir desculpas pela morte de presos da época da guerra de
1920, quando uma invasão da nascente União Soviética foi
surpreendentemente derrotada.
“Especialistas
do Ministério da Defesa identificaram sinais de vídeos fake e outras
falsificações”, disse o infinitamente cínico Dmitri Peskov, porta-voz do
Kremlin, sobre os crimes na Ucrânia que agora estão sendo revelados.
“Quando saímos, estava tudo em ordem”, mentiu, com a habitual cara dura,
o chanceler Serguei Lavrov.
Outros,
piores ainda pela extensão, estão sendo cometidos nesse instante em
lugares como Mariupol, a cidade litorânea onde continua a haver focos de
resistência.
Todos,
evidentemente, serão negados. Dizer que nossos olhos não sabem o que
estão vendo é uma tática consagrada que atravessa os tempos e envergonha
a humanidade.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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