terça-feira, 5 de abril de 2022

Negar massacres como os da Ucrânia é prática que remonta à URSS

 



O cinismo monumental do governo da Rússia, ao dizer que vítimas ucranianas fazem parte de uma “encenação”, tem uma longa e terrível história. Vilma Gryzinski:


Homens executados no meio da rua; o corpo de uma idosa ainda na bicicleta; um porão com cinco cadáveres torturados; uma prefeita, o marido e o filho fuzilados juntos, depois de ter dedos e braços quebrados; três mulheres incineradas nuas; uma cova rasa aberta pelo legista local, antes de fugir, tão grande que pode ser vista por imagens de satélite.

As imagens e os relatos vindos de Bucha e outras localidades desocupadas pelo exército russo parecem um filme de terror. Por mais que a comparação seja um clichê, nesse caso ela é justificada pelos 410 corpos já encontrados, uma atrocidade tão grande que Volodymyr Zelensky deixou o bunker presidencial para visitar o lugar onde “a concentração do mal baixou sobre nossa terra”.

O governo russo, claro, desmente as imagens chocantes, mostrada por jornalistas de órgãos confiáveis, e diz que tudo foi uma encenação. Embaixadores russos chegaram a divulgar vídeos que mostram cadáveres “se mexendo”. Exatamente o mesmo argumento usado no caso do bombardeiro da maternidade de Mariupol, onde uma linda blogueira à véspera de dar à luz foi acusada de ser uma atriz contratada para o papel de vítima.

Mais terrível ainda é a perspectiva de que os massacres em Bucha e lugares vizinhos não sejam uma exceção, um abuso de soldados frustrados, famintos e furiosos por ter que desocupar áreas que consideravam conquistadas.

“Bucha não é um caso isolado. É um indicador de como a Rússia pretendia ocupar e reprimir a Ucrânia”, escreveu no Telegraph o especialista em assuntos militares russos Jack Watling.

A ideia da punição coletiva, diz Watling, faz parte integrante do comportamento de ocupantes russos, como aconteceu no Afeganistão, com o bombardeio indiscriminado de aldeias inteiras, e na Síria.

Watling recupera um vívido relatório enviado pelo diplomata britânico Beilby Ason, que morreu quando era embaixador no Brasil, em 1925, descrevendo o que viu acontecer durante a guerra civil russa. “O número de civis inocentes brutalmente mortos pelos bolcheviques em Argo e outras cidades nos Urais é de centenas; algumas dessas pessoas foram encontradas com os olhos arrancados, outras sem nariz; jovens foram estupradas e, entre outros, o bispo Andronick foi enterrado vivo em Perm enquanto 25 padres foram fuzilados lá”.

O mais notório crime de guerra cometido pelo regime soviético foi o massacre de Katyn, o extermínio sistemático de 22 mil presos de guerra da Polônia: oficiais do exército e da polícia, intelectuais, professores, profissionais liberais, industriais, padres e outros membros das elites pensantes.

O massacre leva o nome da floresta perto da fronteira entre a Rússia e o que é hoje a Belarus, onde os prisioneiros era executados com um tiro na nuca pela NKVD, a polícia política, e jogados em covas coletivas.

Em 1941, depois que a Alemanha nazista rompeu o pacto Ribbentrop-Molotov (mais apropriadamente o acordo Hitler-Stalin) e invadiu a União Soviética, as covas com as vítimas do massacre transformaram-se num instrumento de propaganda. Os nazistas chamaram especialistas internacionais, inclusive um representante do governo polonês no exílio, para investigar o crime hediondo.

A situação era altamente sensível: de cúmplice de Hitler, o regime stalinista tinha se transformado no único aliado capaz de resistir e derrotar as tropas alemãs. O crime foi, de várias maneiras, abafado.

É claro que os russos negaram tudo – e continuaram a negar durante todo o tempo em que durou o comunismo. Só à véspera de seu fim, Mikhail Gorbachev reconheceu a responsabilidade dos soviéticos pelo massacre e pela “mentira de Katyn”, como ficou conhecida a campanha de décadas de negação da verdade. Um ano depois, em 1991, ele renunciou e a URSS acabou.

Vladimir Putin fez uma abertura em relação à Polônia, consagrada em 2010 com uma visita a Katyn e a promessa de construção de uma igreja ortodoxa no local. A Duma, o parlamento russo, aprovou uma resolução nos seguintes termos: “Documentos mantidos em segredo nos arquivos não apenas revelaram a dimensão dessa horrível tragédia, mas também mostraram que o crime de Katyn foi cometido por ordens diretas de Stálin e de outros funcionários soviéticos”.

Entre os documentos que vieram a público com o fim da URSS, consta o memorado 794B, uma carta de Lavrenti Beria, o monstruoso chefe da NKVD, a Stalin, dizendo que os prisioneiros de guerra “continuam a fazer agitação antissoviética e cada um deles somente espera a libertação para aderir ativamente à luta contra o poder soviético” – no que não estava errado.

Beria foi minucioso ao relatar que nos campos de presos de guerra havia “14 736 ex-oficiais, funcionários do governo, proprietários de terra, policiais, policiais militares, carcereiros e espiões”. Em penitenciárias na Ucrânia e na Bielorrússia, eram mais 11 mil poloneses.

“Baseado no fato de que são todos inimigos incorrigíveis do poder soviético”, Beria propunha que fossem executados, sem nenhuma encenação judicial.

A diretiva foi assinada por Stálin, com o termo “Za” – a favor – e mais cinco integrantes da alta cúpula.

Em 1943, com a guerra já virando, forças soviéticas retomaram Smolensk, o local do massacre, e Stálin criou uma força-tarefa “investigativa” para atribuir a culpa aos alemães.

O filme Katyn, do diretor polonês Andrzej Warda, reproduz de forma ficcionalizada as circunstâncias do massacre. A cena mais comovente não é das execuções em si, mostradas em toda a sua banalidade do mal, mas da véspera de Natal em que os prisioneiros poloneses, já prevendo seu destino, cantam Noite Feliz e a música paira sobre os alojamentos dos quais seriam transportados para a morte.

Depois do breve período em torno de 2010, figuras políticas russas voltaram a negar o massacre. Alguns disseram que os documentos divulgados durante os governos de Gorbachev e de Boris Yeltsin eram falsos. Vladimir Soloviev, o apresentador de um programa de televisão onde hoje ameaça o uso de armas nucleares contra “inimigos” da Rússia, disse que a Polônia é que deveria pedir desculpas pela morte de presos da época da guerra de 1920, quando uma invasão da nascente União Soviética foi surpreendentemente derrotada.

“Especialistas do Ministério da Defesa identificaram sinais de vídeos fake e outras falsificações”, disse o infinitamente cínico Dmitri Peskov, porta-voz do Kremlin, sobre os crimes na Ucrânia que agora estão sendo revelados. “Quando saímos, estava tudo em ordem”, mentiu, com a habitual cara dura, o chanceler Serguei Lavrov.

Outros, piores ainda pela extensão, estão sendo cometidos nesse instante em lugares como Mariupol, a cidade litorânea onde continua a haver focos de resistência.

Todos, evidentemente, serão negados. Dizer que nossos olhos não sabem o que estão vendo é uma tática consagrada que atravessa os tempos e envergonha a humanidade.
 
BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

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