sexta-feira, 29 de abril de 2022

Me deixem falar uma coisa

 



Eu também não confio em bilionários. Mas confio mais em bilionários que em milionários. A crônica de Alexandre Soares Silva para a Crusoé:


“Não confio em bilionários”, estão dizendo todos, agora que Elon Musk comprou o Twitter.

Bom, eu também não confio em bilionários. Mas confio mais em bilionários que em milionários, e confio mais em milionários que na classe média alta, e mais na classe média alta que na média, e mais na média que na baixa, e mais na baixa que em mendigos, e mais em mendigos que em crackudos, e mais em crackudos que em presidiários queimando colchões, decapitando colegas e contrabandeando maços de cigarros enfiados nos seus derrières.

Não é que eu confie em quem tem dinheiro. É só que eu desconfio mais de quem não tem. Como vou confiar que alguém cuide dos meus interesses, se ele é tão ruim em cuidar dos seus? Qual a chance que isso aconteça? Mas ainda confio mais em crackudos e presidiários que em políticos, estudantes de todas as espécies, e professores da USP. Achei importante frisar isso, para que não achem que sou maluco.

Suponho que sou um defensor da liberdade de expressão não tanto por motivos racionais, que existem, e que posso enumerar se você pedir e se nós dois conseguirmos ficar acordados enquanto enumero, mas porque instintivamente associo a falta de liberdade de expressão com o fato de que não consigo dormir com as pernas presas pelo lençol. Assim que estou sem lençol, nem penso em mexer as pernas, tudo está bem, e durmo tranquilo; mas assim que me meto, por exemplo, nos lençois opressivamente justos de um hotel (por que sempre fazem assim em hotéis?), preciso mexer as pernas compulsivamente.

É assim que me sinto quando falam que não posso dizer isso ou aquilo ou vou ter o meu perfil apagado. Eu nem queria dizer aquilo, não penso nada daquilo, acho horrível aquilo (vamos fingir), mas agora preciso dizer aquilo. Dá até uma angústia se não disser, e acabo enchendo meus amigos com mensagens moralmente horrorosas de WhatsApp só porque não me deixaram falar a mesma coisa no Twitter. É uma espécie de Tourette das opiniões. Suponho que o número de pessoas sofrendo do mesmo mal deve estar crescendo pelo mundo inteiro, à medida em que a liberdade de expressão diminui.

“Não há nenhuma exceção legítima ao direito da livre expressão”, escreveu o economista libertário Walter Block, em um livro de 1976, chamado Defendendo o Indefensável. É um livro muito divertido em que ele defende o direito de chantagistas, proxenetas, publicitários e pessoas desse tipo. Tem também um capítulo em que ele defende o direito das pessoas gritarem fogo num cinema lotado. Eu aprecio a coragem (o que os judeus chamam de “chutzpah”) necessária pra escrever essas coisas. Mas nenhum dos seus argumentos me convence muito, e ainda prefiro o meu argumento “mas-eu-fico-aflito-quando-não-posso-dizer-uma-coisa”.

Há, claro, o argumento do filósofo inglês John Stuart Mill. Vou explicar o argumento, tentando ser breve e bem didático, e fingindo que li John Stuart Mill. O argumento é que se as coisas boas que existem na sociedade (deve haver algumas) não forem submetidas ao ataque contínuo das ideias ruins que querem destruí-las, vamos aos poucos esquecer por que essas coisas são boas, e em uma ou duas gerações seremos completamente incapazes de defendê-las de qualquer ataque retórico. Acho o argumento bem razoável.

Ainda outro argumento é o de Jordan Peterson, que a liberdade de expressão é análoga à terapia freudiana: aquilo que reprimimos cresce e nos infecta; aquilo que expressamos, dominamos e podemos vir a abandonar. Razoável também.

De qualquer forma entendo um pouco o pânico dos progressistas com a notícia da compra do Twitter por Elon Musk. O Twitter para eles sempre foi um clube onde eles podiam se juntar com pessoas parecidas com eles. Conservadores podiam entrar também, mas, assim que incomodavam demais, um progressista fazia um gesto discreto para um segurança e o conservador era levado para um quartinho nos fundos, onde era devidamente espancado. Passado esse contato breve e sórdido com um conservador, o progressista podia relaxar com os seus amigos em volta da piscina do clube. Devia ser muito aconchegante. Quem não quer um clube feito só de pessoas parecidas conosco?

Gosto de fingir que gosto de variedade de opinões. Já devo ter contado essa lorota até aqui na Crusoé. Se menti, menti até para mim, porque é gostoso pensar em mim mesmo como alguém civilizado que gosta de debater com os outros enquanto bebe uma taça de vinho do porto e oferece um charuto. Mas a verdade é que, embora ache que o mundo é melhor com muitas opiniões diferentes, prefiro que as opiniões diferentes das minhas fiquem longe de mim.

Como os progressistas, gosto de viver numa bolha. Mas sempre podemos viver em bolhas, já que escolhemos quem seguimos na internet. O que incomoda os progressistas não é tanto que não possam viver numa bolha, porque podem. É a existência de outras bolhas ao lado da bolha deles. É o fato de que nessas outras bolhas as pessoas estão falando uns negócios lá. E esse é um incômodo do qual não compartilho e do qual me parece monstruoso compartilhar.
 
BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

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