Se Israel tem algo a ensinar, é o fato de que apenas uma identidade nacional clara, em vez de um apelo genérico a ideias como “a humanidade”, é capaz de dar vitalidade a um povo. A dúvida é se Estados Unidos e a Europa estão dispostos a seguir esse caminho. Gabriel de Arruda Castro para a Gazeta do Povo:
O
youtuber e provocador profissional Nick Fuentes, autointitulado
conservador, gerou controvérsia nos últimos dias ao celebrar o avanço
das tropas russas sobre a Ucrânia. Seria, nas palavras dele, uma derrota
do “grande Satanás”: os Estados Unidos. Aqui e acolá, outras vozes da
direita parecem fazer coro ao argumento de que a guerra iniciada pela
Rússia não é uma ameaça, mas uma esperança. Afinal, Vladimir Putin já
deu demonstrações claras de que se opõe à ideologia de gênero,
o feminismo e resto do pacote politicamente correto que os Estados
Unidos e a Europa Ocidental têm exportado nas últimas décadas. O
argumento de Fuentes e seus colegas é o de que o Ocidente, tal qual Roma
em seu período de decadência, já não merece ser salvo. Mas existe algo
de real nisso? O Ocidente está indo ladeira abaixo ou é apenas uma
ilusão?
Cinquenta
e oito anos atrás, o escritor James Burnham, figura importante do
conservadorismo americano, publicou o livro clássico “O Suicídio do
Ocidente”. Na época, o Cristianismo era quase unanimidade na Europa e
nos Estados Unidos, o homossexualismo era crime — assim como o aborto. O
divórcio amigável, sem necessidade de comprovação de culpa, não existia
na maior parte desses países. Ideias como o casamento gay soavam
absurdas até para os mais radicais progressistas. Entretanto, Burnham
enxergou que a maré estava começando a mudar. Sobretudo nas
universidades e em outros círculos intelectualizados.
No
livro publicado em 1964, ele observou que o Ocidente estava “se
contraindo”, e profetizou: “Se o processo continuar nas próximas décadas
mais ou menos como aconteceu nas décadas anteriores, então – esta é uma
mera extrapolação matemática – o Ocidente estará acabado; A civilização
ocidental, as sociedades e nações ocidentais em qualquer sentido
significativo e reconhecível, simplesmente não existirão mais."
O
processo a que ele se referia era a perda da “vontade de sobreviver”.
Uma doença intelectual e espiritual, não material, nas palavras de
Burnham. “Não pode ser o caso que o Ocidente esteja se contraindo por
falta de recursos físicos e poder; essa carência não existiu e nem
existe".
A
raiz do problema, para Burnham, era o que ele chamava de “liberalismo” —
não o liberalismo econômico, mas a ideia de que não há valores
objetivos e de que tudo se resume a uma questão de preferências
igualmente válidas. Em outras palavras, uma renúncia à ideia da verdade.
A “ilusão liberal”, para Burnham, é acreditar natureza humana pode ser
modificada, e que a humanidade pode atingir um estado de paz global.
Nesse esquema, o Ocidente não possui uma tradição mais especial do que a
dos índios Tupinambás.
"Tempos fáceis, homens fracos"
Burnham
não foi o primeiro nem o último a escrever sobre o assunto. Sua obra
pode ser situada em uma linhagem que inclui 'Deus e o Homem em Yale', de
William Buckley (1951), 'O Fechamento da Mente Americana', de Allan
Bloom (1987), e 'Por que o Liberalismo Falhou' (2018), de Patrick
Deneen.
Antes
de todos eles, o suíço Jean-Jacques Rousseau escreveu, ainda em 1750,
que o progresso da civilização estava tornando as pessoas materialistas,
superficiais e moralmente corrompidas, sem apreço por suas nações e à
religião. “Os políticos da Antiguidade falavam permanentemente de moral e
virtude; os nossos falam somente de comércio e de dinheiro”, criticou
ele, naquele que é conhecido como o Primeiro Discurso.
O
argumento de Rousseau não destoa muito do meme que volta e meia
ressurge nas redes sociais, e segundo o qual “Tempos difíceis geram
homens fortes, homens fortes criam tempos fáceis, tempos fáceis geram
homens fracos, homens fracos geram tempos difíceis”. Mesmo antes da
Revolução Industrial se concretizar, Rousseau já antecipava que a
prosperidade e a evolução das “artes e das ciências” cobrariam um preço.
“O gosto pela ostentação raramente coexiste, no espírito de alguém, com
um gosto pelo que é honesto. Não: mentes degeneradas por uma hoste de
preocupações fúteis não podem jamais geram algo grandioso; e mesmo que
elas tivessem a força necessária, lhes faltaria a coragem”, esbravejou.
Em comum, estes autores têm o argumento de que o Ocidente virou as costas para sua tradição e se tornou débil. Se a invasão da Ucrânia
tem a ver com essa percepção de fragilidade no campo moral, nunca
saberemos ao certo. Mas talvez a imagem do presidente americano Joe
Biden, envelhecido e confuso, pode ser vista como um símbolo do próprio
estado de ânimo do Ocidente.
Enquanto
os vídeos de recrutamento das Forças Armadas de Rússia e China
enfatizam a força e a virilidade, os Estados Unidos tomaram o caminho
oposto. Uma das campanhas mais recentes,
preenchida com animações de desenho animado, mostra uma jovem com voz
infantil enquanto ela conta a sua história: criada por um casal lésbico,
ela se orgulha de ter participado de protestos a favor da causa LGBT.
Em vez de se alistar no exército por lealdade à pátria, ela o fez para
provar “força interior”, seja lá o que isso signifique.
Vladimir
Putin, um tirano saudosista da União Soviética, explora essa lacuna com
demonstrações calculadas de virilidade e um apelo aos valores
tradicionais — o que talvez explique a estranha fixação de grupos mais à
direita com um ex-espião da KGB, a polícia secreta comunista.
Onde o Ocidente vai bem
Os argumentos mais pessimistas sobre o futuro do Ocidente podem soar exagerados para alguns. E isso faz sentido.
Economicamente,
os países ocidentais vivem um período de prosperidade sem paralelos. Os
jovens europeus podem até não encontrar o emprego dos sonhos, mas a
realidade é que, tanto lá quanto nos Estados Unidos, a escassez é uma
lembrança distante: trabalhadores comuns conseguem manter um padrão de
vida inimaginável para seus avós e bisavós. Nos Estados Unidos, empresas
tem tido dificuldades de preencher vagas de emprego com um salário de
US$ 15 por hora (o equivalente a cerca de R$ 23 mil por mês).
Mesmo
as pessoas consideradas pobres estão longe da miséria: a maioria tem
carros e vive em casas confortáveis. O problema dos sem-teto se deve
quase sempre a doenças mentais ou ao vício em drogas. Mas, como regra,
quem trabalha consegue se manter com as próprias pernas — e é por isso
que imigrantes da África e do Oriente Médio continuam se dirigindo à
Europa, mais do que à Índia ou à China, em busca de uma vida mais
confortável.
Militarmente,
o Ocidente continua soberano. Desde a Segunda Guerra Mundial, o
território dos países da OTAN permaneceu praticamente inviolado, com a
exceção de ataques terroristas pontuais. Apesar de estar avançando
rapidamente nesse quesito, a China não consegue fazer frente ao poderio
ocidental.
Culturalmente,
o Ocidente também não parece estar indo mal — pelo menos não quando o
critério é a influência. Potencializados pela internet, a música e os
filmes produzidos nos Estados Unidos e na Europa alcançam os quatro
cantos do globo com uma facilidade impressionante. A relevância cultural
da China, por exemplo, praticamente se limita às próprias fronteiras.
Dinheiro não é tudo
Se
economicamente, militarmente e culturalmente o domínio do Ocidente
continua incontestável, como é possível dizer que ele está em
decadência? A resposta é que o sucesso econômico, ou mesmo militar e
cultural, não explica tudo.
Há
bons argumentos em favor da tese de que a decadência do Ocidente é
sobretudo moral, e que os outros pilares vão acabar cedendo com o tempo.
E é possível olhar para alguns dados objetivos. Se o progresso gera
indivíduos egoístas, hedonistas e superficiais, a consequência será a
ruína de três elementos essenciais de uma civilização: família,
religião, pátria. Em comum, os três carregam a ideia de que existe algo
acima do indivíduo e mais importante do que a auto-satisfação.
A
confiança no futuro não se calcula por declarações ou em livros de
filosofia, mas em elementos mais objetivos: a taxa de natalidade e a
disposição em arriscar a própria vida na defesa da nação.
O
primeiro pilar, o da família, não parece ir bem: boa parte dos países
ocidentais têm taxas natalidades abaixo de 2,1 por mulher, o que
significa que a população está diminuindo. Os níveis de divórcio são
elevados, e só pararam de crescer porque cada vez mais pessoas nem
chegam a se casar.
A
religião, por sua vez, parece seguir o mesmo caminho da família. Ir à
igreja nunca foi tão pouco popular. O problema é maior na Europa, onde
países como a República Checa e a França têm quase 50% de ateus e
agnósticos. Mas os Estados Unidos seguem o mesmo caminho: em neste ano,
um levantamento do Pew Research Center mostrou que o número de pessoas
que frequenta a igreja regularmente nunca foi tão baixo.
Por
fim, a ideia de sacrifício pela pátria tem se tornado uma relíquia do
passado: número de pessoas que morreria pelo país é pequeno. Uma pesquisa global divulgada em 2015 pela Gallup mostrou um padrão claro. O percentual médio
mais alto foi o do oriente médio e do norte da África — países
majoritariamente muçulmanos. Nessa região, a média foi de 83%. No
extremo oposto, a menor percentagem foi a da Europa Ocidental, com 25%.
Nos Estados Unidos, o índice é de 44%. Já China,(71%), Índia,(75%) e
Quênia (69%) estão acima da média global.
Mesmo
economicamente, o Ocidente, se não está empobrecendo, está perdendo
importância relativa. Em especial para a China. Apenas duas décadas
atrás, os Estados Unidos eram o principal parceiro comercial dos países
africanos, e de boa parte dos asiáticos. Hoje, os chineses assumiram
essa liderança. Com a parceria comercial com os chineses, também surge
um compromisso diplomático. O resultado é um afastamento de países
africanos e asiáticos do bloco ocidental.
Progressistas
desistiram da ideia do Ocidente por causa da sua herança (escravidão,
machismo, racismo). Conservadores parecem titubear porque, hoje, o
Ocidente já foi profundamente transformado pelos progressistas — a ponto
de uma empresa com público infantil, como a Disney, se orgulhar de
incluir conteúdo LGBT para crianças e de uma das “mulheres do ano” ser um homem biológico.
"Nacional-conservadorismo"
Ao
mesmo tempo, um movimento — curiosamente, capitaneado por
não-americanos, tem propagado a ideia de que a salvação está numa aposta
redobrada no tripé tradicional: família , religião e nação. O chamado
“nacional-conservadorismo” possui como modelo Israel e a Hungria.
Em
comum, esses regimes têm o fato de serem antiliberais — ou seja: de não
concordarem com o princípio de que todas as civilizações são igualmente
valiosas, e que a moralidade objetiva é uma simples ilusão. Israel, em
especial, parece ser um bom exemplo: o país tem uma taxa de natalidade
muito superior à dos países europeus, religião continua tendo um papel
central na sociedade israelense, e 66% dos cidadãos de Israel afirmam
que morreriam pela nação. As taxas de divórcio estão entre as mais
baixas do mundo desenvolvido.
Talvez
não por acaso, o nome do autor israelense Yoram Hazoni esteja se
tornando cada vez mais popular entre os conservadores americanos
preocupados com a decadência do Ocidente. Autor de “A Virtude do
Nacionalismo” (lançado no Brasil em 2019 pela Vide Editorial), Hazoni
afirma que o pluralismo e o multiculturalismo são ilusões: para ele, sem
uma identidade nacional clara, famílias fortes e um senso de
transcendência, as sociedades humanas perdem a própria razão de
existência.
Uma
das possíveis explicações para a queda do Império Romano foi o seu
sucesso. Não só porque o progresso financeiro levou os tempos fáceis a
gerar homens fracos. É que a própria ideia de império parece ser
autodestrutiva: ao se expandir, o regime precisou incorporar outros
povos e necessariamente se tornar menos romano. Ao se tornar cada vez
menos romano, ele também perdeu o único fator que o mantinha unificado. E
caiu.
Se
Israel tem algo a ensinar, é o fato de que apenas uma identidade
nacional clara, em vez de um apelo genérico a ideias como “a
humanidade”, é capaz de dar vitalidade a um povo. A dúvida é se Estados
Unidos e a Europa estão dispostos a seguir esse caminho. Caso o cenário
pessimista se confirme, vai ser possível dizer que James Burnham estava
certo: a morte do Ocidente terá sido um suicídio.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário