domingo, 27 de março de 2022

Rússia: um centenário trágico.

 



Nos tempos que correm, é importante lembrar a História, e particularmente a História da Rússia, em que pesa e pesará a herança de Stálin e do bolchevismo. Jaime Nogueira Pinto para o Observador:


No próximo dia 3 de Abril faz um século que Estaline foi designado Secretário-Geral do Partido Comunista da Rússia. É uma data decisiva para a história política da Rússia e do mundo, num tempo em que a Rússia volta a estar no centro da nossa História.

O mundo contemporâneo nasceu da Grande Guerra de 1914-1918 e da “paz punitiva” de Versalhes. Em 1917, as derrotas das tropas russas na frente oriental arrastaram a queda da monarquia dos Romanoff e trouxeram a revolução de Fevereiro e a revolução de Outubro, com o triunfo dos bolcheviques.

Os bolcheviques eram a ala esquerda do Partido Social-Democrata Operário da Rússia que, em 1905, sob a chefia de Lenine, triunfara no congresso. O “Outubro Vermelho” levaria ao poder estes revolucionários determinados, imbuídos do messianismo utópico dos justos e iluminados, que não concebem limites éticos ou morais na acção contra os inimigos do Bem, do Progresso, do Povo e da inexorável marcha da História.

A partir do Verão de 1918, as forças anticomunistas, os “exércitos brancos”, com apoio de contingentes militares estrangeiros ocidentais e japoneses, iniciaram a resistência e a guerra civil que os bolcheviques iriam vencer.

Para a vencer, os bolcheviques – que eram uma minoria não só na Rússia, mas até entre a oposição ao czarismo – seguiram a estratégia dos jacobinos, de quem Lenine era admirador e com quem aprendera a manipular princípios democráticos para estabelecer a ditadura e o Terror. Do mesmo modo que os jacobinos tinham dividido os inimigos em categorias sociais rígidas – aristocratas, padres, camponeses da Vendeia –, assim também os bolcheviques identificavam “inimigos de classe” e “inimigos do povo”, a quem retiravam qualquer vestígio de razão ou de humanidade, recorrendo ao terror em grande escala, como uma forma de “higiene social”.

A História contemporânea tem mostrado que, para levar a opinião pública, as “massas”, o povo a aceitar e a legitimar a guerra sem tréguas, o genocídio ou o Terror, é preciso, primeiro, definir o grupo político ou social ou étnico ou nacional a eliminar como “não-humano”, como inimigo da Humanidade, da Nação, do Povo ou do que for. Foi o que os jacobinos fizeram, primeiro com os monárquicos e católicos, depois com os “moderados” girondinos e, finalmente, entre eles. Foi também o que os bolcheviques fizeram com os russos-brancos e com os mencheviques, antes de se começarem a sanear ou a eliminar entre si. Foi o que Hitler fez com os judeus e os comunistas e depois com os seus partidários menos seguros, na noite das Facas Longas. Foi o que, no Ruanda, fizeram os hútus com os tutsis e depois com os hútus moderados. É o que, nas sociedades actuais, recorrendo às técnicas possíveis, das fake news e dos fact checks às deturpações de declarações e à ocultação de realidades, pretende fazer-se com toda a dissidência ou problematização do “pensamento único” – silenciando-as e cancelando-as socialmente. À falta de eliminação física, que ainda não é permitida e pode dar cadeia, recorre-se ao assassinato moral.

A ascensão

Com “a revolução em perigo”, a Tcheka – a polícia secreta bolchevique que sucedeu à Okranaczarista e que, em poucos meses, fez mais vítimas do que a Okrana em várias décadas – exterminou russos-brancos, sociais-revolucionários, mencheviques, socialistas e anarquistas aos milhares, em represálias permanentes.

É neste contexto histórico e político que Estaline se vai afirmar. Nascido em 1878, em Gori, na Geórgia, filho de um pai sapateiro, que detestava, e de uma mãe que adorava, Estaline foi educado no seminário ortodoxo de Tiflis. Iossif Vissarionovitch Dgongachivili teve uma juventude de leituras “revolucionárias”, de Victor Hugo a Karl Marx, e iria ser sempre um devorador de livros e de filmes. O futuro Czar Vermelho não se integrou na disciplina do seminário. Adolescente, começou a escrever em publicações nacionalistas georgianas e, a partir de 1903, como militante socialista clandestino, conheceu as primeiras prisões. Em 1906 encontrou-se com Lenine em Estocolmo e em 1907 estava já em Londres no Congresso do Partido.

Durante anos, até à revolução de 1917, Estaline está na linha da frente da luta revolucionária no Cáucaso, no exílio, nas prisões e na deportação siberiana. É membro do Comité Central do Partido a partir de 1912, quando escreve um ensaio sobre “O Marxismo e a Questão Nacional”. Talvez porque se tenha especializado no tema, Estaline vai ser nomeado Comissário do Partido para as Nacionalidades e com Lenine, Zinoviev, Trotsky, Kamenev, Bukarine e Sverdlov vai fazer parte do Executivo do Comité Central. Nas discussões internas da cúpula do Partido, Estaline quase sempre apoia Lenine que, às vezes, está em minoria. Tem também, durante a guerra civil, responsabilidades no abastecimento de Moscovo. Na frente, combate contra Denikine e em Outubro-Novembro de 1919 está na invasão da Polónia, invasão que terminará com uma grande derrota para os bolcheviques, confirmada pelo Tratado de Riga de Outubro de 1920.

Acabada a guerra civil com a retirada pelo Mar Negro das forças de Wrangel da Crimeia, o ano de 1921 anuncia-se com forte contestação interna, desde a revolta camponesa de Tambov à dos marinheiros de Kronstadt. O Exército Vermelho conseguirá dominar estas rebeliões “reaccionárias” com a habitual repressão e terror, mas uma fome tremenda mata milhões de camponeses.

Em Março de 1921, perante uma gravíssima situação económica, Lenine substitui as directivas do “comunismo de guerra” pela chamada Nova Economia Política, que reintroduz factores de mercado. Os bolcheviques consideravam a liberdade de expressão, de imprensa e de reunião, bem como o sufrágio universal e as eleições livres, “direitos democrático-burgueses”, que convinha usar e explorar quando na oposição, mas que urgia eliminar quando se tornavam “instrumentos anti-socialistas”, passíveis de serem utilizados pela “Burguesia” e pela “Contra-Revolução”. Os seus actuais sucessores da esquerda radical parecem seguir o mesmo caminho quando contestam os direitos de livre expressão dos seus adversários ou denunciam triunfos eleitorais como triunfos do “populismo” e da “extrema-direita”.

Estratégia de controle

São conhecidas as críticas de Trotsky e da esquerda bolchevique a Estaline, que acusam de ser um revisionista da ortodoxia leninista. Estaline tinha poder dentro do Partido e do Governo e como Comissário das Nacionalidades do SovNarkom (abreviatura russa para o Conselho dos Comissários do Povo). Percebeu cedo que a passagem de um partido bolchevique que, em 1917, tinha 20 mil membros, para o partido vitorioso da guerra civil, com centenas de milhares de militantes, significava a transição de uma elite de “mentes brilhantes”, como Trotsky e Bukarine, que aceitavam a liderança de Lenine mas que discutiam entre si, para um colectivo muito maior com uma rede burocrática de suporte.

Manteve-se no Conselho Militar Revolucionário da República, que se ocupava das operações militares, e no Conselho do Trabalho e da Defesa, que tratava da logística económica do Exército Vermelho. Lenine encarregara-o, especificamente, de liquidar os mencheviques sobreviventes nas estruturas do Partido e do Estado.

Tal como no processo revolucionário de Paris, no período mais radical da Revolução Francesa, o poder passara, em modo ditatorial, para o Comité de Salvação Pública de Robespierre e de um punhado de incondicionais, assim também a urgência revolucionária, a guerra civil e o combate à reacção levaram os bolcheviques a entregar o poder a um Comité Central de 19 membros. Destes, sairia o Politburo, para se ocupar da política e da estratégia política, e o Orgburo, para se ocupar da administração do Estado. E a “República dos Sovietes” logo inverteria a relação, passando o Partido Comunista a controlar os seus órgãos superiores e a dominar os Sovietes e a Administração do Estado.

A regra era a concentração do poder nesse colectivo de meia dúzia de “intérpretes do proletariado”. Disse-se que a razão pela qual Estaline ficou com o Secretariado no Partido foi a preferência dos restantes comissários por pelouros mais nobres, como os Estrangeiros ou a Guerra. Mas seria precisamente a partir do Secretariado que Estaline firmaria o seu domínio. Aí, ia ter, não só o poder de nomear, mexer e manobrar o pessoal partidário, mas também a oportunidade de centralizar uma importante rede de informações.

Depois da doença e da morte de Lenine, Estaline consolidou o seu mando em meia dúzia de anos através de uma série de alianças e da progressiva eliminação de rivais. O primeiro foi Trotsky, cuja “revolução mundial permanente” sofrera severas derrotas em Itália, na Alemanha e na Polónia – com a vitória do fascismo, o esmagamento da revolta comunista dos spartakistas em Berlim e dos comunistas na Baviera e a derrota militar na Polónia, às mãos de Pilsudsky –, o que contribuiu para o triunfo da tese estalinista do “Socialismo num só país”.

Ideias que matam

Estaline derrotou a esquerda do partido, encabeçada por Trotsky, com o concurso de Kamenev, Zinoviev e Bukarine. Depois, aliou-se a Bukarine e à oposição “de direita” para neutralizar Zinoviev e Kamenev. Seguindo uma linha “centrista” e com o apoio dos quadros médios do Partido e o controlo da GPU (Directoria Política do Estado), que sucedera à Tcheca, Estaline neutralizou primeiro os esquerdistas e depois o direitista Bukarine. Em 1936-38, liquidá-los-ia a todos nos Processos de Moscovo.

Os comunistas, de boa ou má fé, impressionados pelos crimes e horrores do comunismo soviético no quarto de século do poder absoluto de Estaline (1928-1953), procuraram construir a narrativa de que os princípios generosos e humanitários do marxismo-leninismo tinham sido atraiçoados pelo Czar Vermelho, que os sacrificara a um projecto de tirania pessoal. Mas ao contrário das justificações de conveniência e das explicações manipulatórias, Estaline só podia ter existido, e ter sido seguido e obedecido, no quadro de uma ideologia salvífica, totalitária, que legitimava em nome dos novos deuses da Modernidade ateia (e da História, da Ciência, do Futuro, da Utopia) o que noutros tempos e noutros quadrantes seriam atrocidades inqualificáveis, injustificáveis e imperdoáveis.

Como escreveu Soljenitsin no Arquipélago de Gulag: “É a ideologia que dá ao Mal as suas tão almejadas justificações e dá aos que praticam o mal a necessária firmeza e determinação. É a teoria social que ajuda a fazer com que os seus actos apareçam como bons em vez de maus”
 
BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

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