domingo, 27 de março de 2022

Putin defende o genocídio dos ucranianos há anos

 

BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

  
Assumir que uma nação ou um Estado não existe é reivindicar o direito de destruí-lo. Timothy Snyder para o Estadão:


Uma década atrás, ele propôs que a política nasce de antagonismos entre amigos e inimigos, seguindo o jurista nazista Carl Schmitt e o filósofo fascista Ivan Iliin, que Vladimir Putin considera professores. A Ucrânia era uma amiga forçosa: quem não compreendia que os ucranianos são parte da civilização russa é inimigo. Para Putin, a “unidade nas almas” de russos e ucranianos é a vontade de Deus, defendida por uma violência depurativa.

Em um extenso ensaio, publicado em julho, Putin argumentou que a nação ucraniana não existe. Complementando alegações anteriores com outras que qualificou como históricas, Putin escreveu a respeito da “unidade” entre russos e ucranianos. O Ocidente confundiu os ucranianos fazendo-os acreditar que eles possuem uma identidade distinta, mas isso poderia ser corrigido.

Essa narrativa ecoa a visão de Hitler. O führer também considerava os ucranianos um povo de natureza colonizável, que, uma vez libertado da liderança supostamente judaica da União Soviética, serviria gentilmente a novos mestres. Dimitri Medvedev juntou essas duas posições deixando claro que o elemento que desqualifica o governo ucraniano é seu presidente judeu. Nas semanas que antecederam a invasão, a Rússia se recusou a negociar com a Ucrânia, qualificando-a como vassala.


Putin deu continuidade ao seu argumento em 21 de fevereiro, anunciando que tropas russas atravessariam a fronteira para a Ucrânia porque o Estado ucraniano é artificial. Já que a Ucrânia foi “criada inteiramente pela Rússia”, a Rússia tinha direito a corrigir esse erro.

Assumir que uma nação ou um Estado não existe é reivindicar o direito de destruí-lo. “Desnazificação” e “desmilitarização”, os dois objetivos de guerra que Putin anunciou em 24 de fevereiro, dia em que sua invasão começou, significam exatamente isso.

“Desnazificar” significa eliminar as pessoas que não entendem que a Ucrânia é parte de uma Rússia maior. É fácil ser distraído pela perversidade da referência nazista, já que a Ucrânia é uma democracia governada por um presidente judeu, e as bombas russas mataram até mesmo um sobrevivente de campos de concentração.

Mas subliminarmente existe a política: “Desnazificar” para Putin significa simplesmente uma licença para matar ou deportar pessoas. Já que o termo “nazista” não se refere a ninguém em particular, ele vira uma justificativa para guerra sem fim e depuração. Então, enquanto houver ucranianos resistindo, haverá nazistas para punir.

“Desmilitarizar” significa destruir um Estado soberano pela força, o que incluiria a eliminação de qualquer um capaz de preservar as formas elementares da soberania. O objetivo inicial da guerra foi capturar (e presumivelmente matar) a liderança ucraniana, que Putin caracterizou em 24 de fevereiro como uma “junta antipopular” e no dia seguinte como “viciados em drogas e neonazistas”.

Em 16 de março, durante um discurso empolgado atacando seus críticos internos, qualificando-os como “traidores” e “escória”, Putin referiu-se aos russos que mantêm laços com o Ocidente como “moscas”. Em sua mente, ucranianos são o mesmo que russos que gostam de ocidentais. Eles devem ser corrigidos à força — “purificados” ou “cuspidos para longe”, segundo colocou naquele discurso.

Putin previu que a Ucrânia cairia em dois dias. Isso não aconteceu, mas a propaganda dessa narrativa já estava pronta. Uma declaração de vitória foi publicada acidentalmente pela agência de notícias oficial do governo russo RIA Novosti em 26 de fevereiro. Ela reprisou todos os temas genocidas de Putin como parte de “uma nova era”. O Estado ucraniano não existia mais e a população de seu território tinha aceitado alegremente a dominação russa. A “unidade” havia sido atingida por meio da “resolução da questão ucraniana”. Um Estado ucraniano “jamais voltará a existir”, e as massas estavam felizes em viver como “pequenos russos”.

Atrocidades

A discrepância entre essas fantasias e a realidade produz as atuais atrocidades. Putin não pode admitir que errou e é obrigado a fazer o mundo se curvar à sua fantasia. A vitória só pode representar um país tão destruído que os remanescentes da população sem-Estado não tenham escolha a não ser aceitar que pertencem à nação estrangeira, submetidos a controle policial russo e reeducação pelo resto de suas vidas — e aceitando que seus filhos sejam criados como russos, sem nenhuma das liberdades que eles conheceram enquanto ucranianos.

Esta ambição é visível na maneira que a guerra é travada: equipes de assassinos não param de chegar, e elites locais seguem desaparecendo. Milhares de ucranianos foram deportados para a Rússia contra sua vontade. Hospitais, escolas e abrigos antibomba para civis são atacados incessantemente. Um quarto da população de 44 milhões de pessoas foi deslocado pela guerra.

As palavras de Putin refletem claramente as ações de seu país na Ucrânia. O Artigo 2.º da Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio das Nações Unidas especifica cinco atos que cumprem sua definição de “genocídio”; todos foram cometidos pelas forças russas na Ucrânia. Como evidência de dolo: Putin os vem confessando desde o início.

Os ucranianos entendem isso tudo; e por causa disso estão lutando. Testemunhar a aspiração genocida de Putin pode ajudar o restante de nós a entender de onde vem esta guerra, para onde vai e por que ela não pode ser perdida.

*Timothy Snyder é professor de história na Universidade Yale e autor de ‘O caminho para o fim da liberdade’ e ‘Terras de sangue’. Ele gravou uma nova edição em áudio de ‘Sobre a tirania’, com 20 aulas novas a respeito da Ucrânia

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