terça-feira, 1 de março de 2022

O enrosco da terceira via diante do populismo tribalista

 

BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

Mais preocupados com suas conveniências eleitorais, os políticos que prometeram lutar por uma canidatura única capaz de quebrar a polarização Lula-Bolsonaro dividem o centro e acabam fortalecendo os extremos. Sérgio Pardellas para a revista Crusoé:


A polarização entre Lula e Jair Bolsonaro, presente hoje na corrida presidencial, já se desenhava em fevereiro de 2018, a seis meses da homologação das candidaturas, como agora. Àquela altura, o petista aparecia em primeiro lugar nas pesquisas ao Palácio do Planalto, com 34% das intenções de voto contra 18% do então candidato do PSL – em 1º de setembro, o Tribunal Superior Eleitoral tornaria Lula inelegível com base na lei da Ficha Limpa, o que o levou ser substituído na chapa por Fernando Haddad. Os demais concorrentes, como Ciro Gomes, do PDT, Geraldo Alckmin, do PSDB, e Alvaro Dias, do Podemos, oscilavam entre 4% e 7%.

Por mais que a candidatura de Bolsonaro ainda fosse encarada pela classe política como uma chuva de verão, aos poucos a tempestade perfeita que levou à eleição do atual presidente ganhou forma. O resto é história. Entre os mais experientes políticos, o diagnóstico a respeito do triunfo de Bolsonaro nas urnas era dito quase que em uníssono: para além de todas as circunstâncias políticas que levaram ao surgimento do bolsonarismo, a fragmentação das demais candidaturas teve peso decisivo para que uma alternativa aos dois extremos não estivesse no segundo turno.

Para evitar a repetição do mesmo cenário em 2022, pregavam as mesmas vozes, seria necessária a união em torno de um tertius, alguém que entre todos se mostrasse mais capaz de afastar o risco da volta de Lula ou da reeleição de Bolsonaro. De lá para cá, tem havido mais sabotagem à chamada terceira via do que propriamente ações para torná-la realidade. O resultado é que, de novo, faltando seis meses para o registro das candidaturas, Lula e Bolsonaro são os favoritos para duelarem nas eleições – há chances de o petista ser eleito até mesmo em primeiro turno.

Os movimentos políticos empreendidos durante esta semana são ilustrativos da verdadeira preocupação dos dirigentes partidários: a maioria parece mais interessada em fazer prevalecer suas conveniências particulares e eleitorais do que em se empenhar, de fato, em construir uma opção viável. Políticos que até outro dia prometiam apoiar o candidato que estivesse mais bem colocado nas pesquisas estimulam candidaturas que exibem hoje pouca musculatura eleitoral e ajudam a dividir o eleitorado refratário a Lula e Bolsonaro.

Cabeças coroadas do PSDB, por exemplo, têm contribuído firmemente para a reprodução do mesmo cenário de quatro anos atrás. Na noite de terça-feira, 8, a ala derrotada por João Doria nas prévias da legenda se reuniu para decidir quem apoiar à Presidência. Se até recentemente os dissidentes falavam em aguardar até março ou abril para ver se o governador de São Paulo avançava nas pesquisas, agora eles defendem abandoná-lo à própria sorte desde já, pois acreditam que sua situação é irreversível – o tucano, hoje, está empacado com 3% das intenções de voto.

Entre os presentes ao encontro, realizado na casa do ex-ministro Pimenta da Veiga, em Brasília, havia tucanos que até recentemente pregavam em público a convergência em torno de um nome com mais viabilidade no campo da terceira via. Agora, não bastasse apresentar como alternativa a Doria candidatos que ainda engatinham nas pesquisas assim como ele, há um racha até mesmo entre os dissidentes: um grupo, liderado pelo senador Tasso Jereissati e por José Aníbal, defende o apoio a Simone Tebet, do MDB. O outro ainda sonha com a candidatura do governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, derrotado por Doria nas prévias tucanas – seja pelo próprio PSDB ou pelo PSD de Gilberto Kassab. O terceiro grupo, ligado ao deputado Aécio Neves, não quer candidatura alguma. Prefere privilegiar a formação de uma portentosa bancada na Câmara. “Foi um jantar de derrotados, com todo respeito. Todos eles foram derrotados nas prévias. O PSDB é maior do que cinco pessoas”, criticou Doria.

Alvo do convescote tucano, Doria tem um passado que, de certa forma, tira sua autoridade para falar de seus colegas de partido. Em 2018, coube ao atual governador paulista iniciar dentro do PSDB o processo de cristianização do então candidato presidencial Geraldo Alckmin, ao criar o movimento BolsoDoria – Bolsonaro para presidente e ele mesmo para o governo. No final de setembro do ano passado, em jantar em São Paulo com a presença do ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta e do hoje pré-candidato do Podemos à Presidência, Sergio Moro, Doria se dispôs a abrir mão da candidatura caso algum deles se mostrasse mais competitivo nos primeiros meses de 2022. Ao que tudo indica, no entanto, a promessa não será cumprida – atualmente, Moro figura nas pesquisas com 9% das intenções de voto, o triplo do tucano, e não há qualquer sinal de que ele deixará a disputa por vontade própria.

Para reverter o quadro de estagnação, o pré-candidato do PSDB espera contar em sua aliança com o Cidadania, presidido por Roberto Freire. Um dos artífices da pretensa candidatura de Luciano Huck ao Planalto, Freire sempre se apresentou como um ardoroso defensor da candidatura de terceira via, como contraponto a Lula e Bolsonaro. Porém, ao defender a composição de uma federação do Cidadania com o PSDB, ele na prática contribui para aprofundar a divisão entre os candidatos de centro. O martelo será batido durante a reunião do comando da legenda que está marcada para o próximo dia 15. Indagado se sua posição não joga contra a união da terceira via, Freire minimizou o problema. “Os partidos estão colocando nomes para que participem do diálogo apresentando suas alternativas. É um processo. Há continuidade de diálogo, seja falando em federação, seja debatendo candidatos”, disse.

Se conseguir atrair o Cidadania, Doria espera se cacifar para incorporar à sua aliança o União Brasil, que já esteve próximo de filiar Sergio Moro. Ocorre que, pelo jeito, e por causa da intervenção de ACM Neto, a legenda nascida a partir da união do DEM com o PSL prefere perder a eleição presidencial a apostar, desde agora, em algum dos nomes. “Infelizmente, com o cenário polarizado entre petistas e bolsonaristas, estamos vendo novamente o empobrecimento do debate. Em vez de disputa de projetos, guerra de indivíduos”, lamenta Eduardo Mufarej, fundador do movimento de renovação política Renova BR.

Gilberto Kassab, cacique do PSD, é outro que vinha adotando o discurso em favor de uma alternativa à polarização. Agora, ele ensaia filiar ao partido o ex-governador do Espírito Santo Paulo Hartung — que sempre esteve empenhado em articular uma opção capaz de unir o que ele próprio chama de “centro expandido” — e uma das opções à mesa, ainda que pouco provável, é lançá-lo à Presidência. Antes, já vendo a candidatura de Rodrigo Pacheco naufragar, Kassab cogitou trocá-lo por Eduardo Leite, caso o gaúcho topasse ingressar em seu partido. Mas, enquanto faz esse movimento, o presidente do PSD não se constrange em flertar publicamente com Lula. Os dois estiveram juntos na segunda-feira, 7, na sede do PT, em São Paulo. O cálculo é óbvio. De olho em um naco de poder em um eventual governo Lula, e acreditando que a corrida parece definida, Kassab começou a achar mais interessante – e mais lucrativo politicamente – apoiar o petista já no primeiro turno. Em pelo menos nove estados, PSD e PT estão juntos. A dúvida é sobre se uma aliança desde já não atrapalhará mais do que ajudará a fazer uma bancada de parlamentares robusta. Ou seja: mais um enrosco.

A distópica vitória de Jair Bolsonaro em 2018 teve como bases o uso das redes sociais como instrumento político-eleitoral, o apoio de setores do conservadorismo presentes na classe média urbana e nos grotões do país, o reforço dos que acreditavam na condução liberal da economia e o voto maciço do eleitorado antipetista no candidato que parecia jogar no terreno da defesa da ética e do combate à corrupção, enquanto a classe política era desmoralizada pela Lava Jato. Com o completo abandono dessas bandeiras por Bolsonaro, parte desse eleitorado ficou órfão, em busca de alternativa. Assim, abriu-se um clarão para a terceira via. Com a divisão entre os candidatos que poderiam ocupar esse espaço, essa oportunidade histórica está sendo jogada fora.


Para Paulo Hartung, ele próprio alçado à condição de peça desse complicado xadrez, ainda há tempo de evitar o desastre. “Estamos na antessala do processo eleitoral”, afirma. O ex-governador avalia que o alto número de indecisos nas pesquisas espontâneas recentes indica que ainda há espaço para o crescimento de um terceiro candidato. Quando os nomes dos candidatos não são apresentados pelos entrevistadores, cerca de 40% dos eleitores dizem ainda não saber em quem votar para presidente. Desse total, quase 60% são mulheres. “Ainda é possível mudar o jogo. Sobretudo porque as mulheres, em sua maioria indecisas hoje, costumam definir eleições no país”, aposta Hartung. Para que isso aconteça, porém, é preciso tirar os sabotadores do tabuleiro.
 
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