domingo, 27 de março de 2022

Filha de brasileira e fã de Elis Regina, prefeita de Santiago propõe gestão feminista

 

POLITICA LIVRE
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É em bom português que a nova prefeita de Santiago, Irací Hassler, 31, conta que é fã de MPB e adora Elis Regina. “O idioma está na minha vida pela música e pelos parentes a quem sempre visito no Brasil”, conta. Com a família por parte de mãe saída do Piauí e hoje morando no Rio, ela tem raiz brasileira também no primeiro nome, de origem tupi-guarani.

Hassler assumiu a prefeitura da principal comuna do país há oito meses —a capital é dividida nesses subgrupos, e o de Santiago corresponde ao centro histórico e aos principais bairros—, filiada a uma das legendas da base de apoio do presidente Gabriel Boric, o Partido Comunista.

Ela conta que começou na militância por volta de 2011, época das intensas manifestações estudantis que levariam à política vários dos colegas de sua geração, incluindo o recém-empossado mandatário e os agora ministros Camila Vallejo e Giorgio Jackson.

No último dia 19, Hassler foi a um evento especial para ela: no Teatro Municipal, pela primeira vez a Orquestra Filarmônica de Santiago foi dirigida por uma mulher, Alejandra Urrutia, 46. “O feminismo está na minha gestão de modo transversal, da área de segurança até a de cultura. Não é apenas mais um setor do governo. Essa é uma gestão feminista em todas as áreas”, disse.

Como é sua relação com o Brasil?

Minha mãe nasceu no Piauí e se mudou para o Rio de Janeiro. Quando conheceu meu pai, que é chileno, veio para o Chile e aqui nascemos eu e meus irmãos. Mas eles até hoje sonham em voltar. Toda a família da minha mãe continua no Rio.

Além de falar português sempre com ela, tenho uma relação intensa com a cultura. Adoro MPB, Chico Buarque, Caetano Veloso, e recentemente descobri Os Mutantes. É uma forma de manter o idioma sempre na minha cabeça também. De todos os artistas, acho que uma das que mais gosto é Elis Regina, pela música e por sua potência, sua energia.

Como a sra. define sua formação política?

Começou com o movimento estudantil. Entrei na Universidade do Chile quando aquilo estava fervilhando e passei a me envolver de modo muito ativo. Primeiro no curso, no modo como se ensinava economia, depois com os temas da sociedade. Acho que, para a minha geração, o movimento estudantil foi definidor, mesmo para aqueles que depois decidiram não entrar na política. Foi algo de massas, aguçava nossa vontade de refletir sobre o mundo em que vivemos.

E como é sair disso para a realidade de estar no escritório da prefeitura, administrando Santiago?

Somos uma geração que tem bastante consciência da responsabilidade. Estamos muito felizes, é claro, com esse momento histórico que nos deu a chance de chegar onde estamos. Mas somos conscientes do que foi feito para que tivéssemos essa oportunidade, dos que lutaram pelo fim da ditadura, pela democracia. É como se fôssemos parte de uma realidade muito maior.

Dirigir a principal comuna de Santiago, com Boric na Presidência, gera grande expectativa. O Chile é um país de desigualdades profundas. De uma falta de acesso de grande faixa da população a direitos elementares. De um grande desrespeito a nossos recursos naturais.

A sra. começou no cargo antes do presidente, há oito meses. Quais foram os principais desafios até aqui?

Eu gostaria que isso fosse um projeto de cogestão com a população. Mas isso é difícil realizar de uma só vez. Encontrei uma precariedade muito grande no que diz respeito a essa relação e à estrutura do governo local.

Acho que uma das principais preocupações dos cidadãos é recuperar os empregos que se perderam. Mas se nós, como nova geração política, apenas entregarmos os empregos, não estaremos fazendo as coisas bem. Queremos entregar um novo tipo de emprego, com um novo tipo de participação trabalhista.

Da minha parte, já começamos um trabalho de recuperação da área verde, de dar vida a esses espaços, um pouco para sinalizar a importância que damos a isso para o país. Para isso, precisamos de mais espaços públicos. Espero que agora, com a saída de Sebastián Piñera e a chegada de Boric, possamos contar mais com o apoio do governo nacional.

Na Prefeitura, a sra. tem de lidar com as consequências da crise migratória. Como tem sido isso?

A comuna de Santiago é muito diversa, multicultural, assim como o país. Mas aqui estamos recebendo uma cifra enorme de imigração. A crise migratória do norte do país desemboca aqui. Creio que faltam políticas públicas e, nesse sentido, também espero poder trabalhar melhor com Boric do que foi com Piñera.

Quero que Santiago seja uma comuna de acolhimento. Para isso é preciso construir albergues —e um que estamos construindo não vai ser suficiente para a quantidade de gente que precisa—, mas não é só isso. Queremos que essas pessoas tenham direitos sociais respeitados, possam buscar empregos, ser cidadãos independentemente de seus locais de origem. E é preciso que isso caminhe com as políticas nacionais para regulamentar a imigração. Vamos apoiar e acompanhar o que decida o presidente.

Ainda há muitas barracas no centro da cidade, ocupadas por imigrantes que não têm onde dormir. Sim, é um problema que ainda não conseguimos resolver, mas que, como eu dizia, depende de vários fatores, várias políticas. Estamos estabelecendo parcerias com ONGs de direitos humanos, mas precisamos de um papel mais ativo do Ministério de Desenvolvimento Social, do governo em seu conjunto.

Como economista, como vê a situação do Chile? A inflação está alta (7,7% ao ano), o Congresso debaterá uma nova retirada de fundos das pensões privadas. É um cenário alentador?

Não. Precisamos que o Chile funde um novo modelo de desenvolvimento, baseado não apenas no extrativismo de nossos recursos naturais, mas na criação de valor de nossa economia. Precisamos fortalecer o emprego decente no Chile, porque isso se deteriorou muito durante a pandemia.

Sobre o “quinto retiro”, é importante que o governo apresente uma proposta mais estrutural em relação a como enfrentar os problemas, para evitar que se chegue a isso. Uma nova retirada [dos fundos] debilitaria ainda mais nossa economia e aumentaria os preços. É por isso que é necessário construir alternativas, espero que o governo possa colocá-las sobre a mesa a tempo.

A repressão aos protestos de 2019 foi brutal. Hoje, como autoridade local, como vê a necessidade de, por exemplo, deter um protesto com gás lacrimogêneo, como ocorreu no dia da posse de Boric?

Em primeiro lugar, é preciso resguardar o direito à expressão sem abusar do uso da força. O governo Piñera fracassou nisso, porque tomou más decisões e porque tinha uma perspectiva tremendamente autoritária. Declarou guerra ao povo do Chile por causa das manifestações. Hoje espero que o Ministério do Interior possa ter um trabalho distinto, acompanhar os protestos com respeito aos direitos humanos e cuidar da ordem pública.

Sempre fui crítica das bombas de gás lacrimogêneo, porque afetam muito a saúde das pessoas. Há que se buscar melhores mecanismos. O fundamental é evitar a violação dos direitos humanos e resguardar que os atos permitam que a vida cotidiana continue. Ainda não encontramos o mecanismo ideal para esse desafio, mas o direito à manifestação estará garantido nessa gestão, ele é essencial numa democracia. [Na sexta, 25, um estudante foi baleado no tórax por um policial num ato na capital que pedia a revisão do valor do vale-alimentação. A ministra do Interior classificou o fato como gravíssimo.]

A sra. instalou uma seção na prefeitura apenas para temas de gênero. Como isso vem funcionando?

Essa será uma gestão feminista de modo transversal, haverá um olhar de gênero em todas as áreas. Fazemos acompanhamento nas áreas da educação, cultura, segurança, realizamos capacitação com quase todos os servidores. A ideia é que funcionários capacitados estejam em todas as áreas de atenção ao público, dos trabalhadores administrativos aos carabineros [policiais].

A sra. mantém contato com figuras políticas do Brasil?

Pude conhecer Anielle Franco, irmã de Marielle [esteve na posse de Boric como convidada], e nos demos muito bem. Tenho enorme interesse nas lutas da comunidade negra do Brasil e quero aprender mais sobre isso, daí a vontade de fortalecer esse vínculo.

Sylvia Colombo/Folhapress

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