Farão falta as ideias e até a personalidade caricata de Olavo de Carvalho. E fará falta a defesa do indivíduo como ente autônomo e digno de compaixão. Paulo Polzonoff para a Gazeta do Povo:
O
cenário é o mítico Bar Lagoa, no Rio de Janeiro. O ano é 2003. Uma pena
que minha memória não me permita nomear todos que estão à mesa
conversando animadamente enquanto esperamos ser destratados pelo garçom –
a experiência gastrocomportamental responsável pela fama do lugar.
Entre salsichas e chopes, o assunto à mesa é Olavo de Carvalho.
Para
quem já nasceu e cresceu ouvindo falar de Olavo de Carvalho é difícil
expressar a importância dele. Ainda mais nos últimos anos do governo de
Fernando Henrique Cardoso e primeiros anos do governo do PT. Naquela
época, apesar do espantalho do “neoliberalismo” e do colapso
relativamente recente da União Soviética, a mentalidade coletivista era
absolutamente hegemônica. Aí apareceu Olavo de Carvalho empunhando uma
palavra simples, mas que fez toda a diferença para uma geração:
indivíduo.
Era
sobre isso que conversávamos naquele dia: a primazia do indivíduo sobre
o grupo. Da "alma individual" sobre o "espírito do tempo".
Infelizmente, me parecia uma contradição que precisássemos nos reunir e
agirmos em grupo para discutirmos justamente a importância do indivíduo.
Mas isso não vem ao caso. A vida passou e cada uma das pessoas reunidas
naquela mesa foi vivê-la. Cada qual inoculada com essa ideia que hoje
pode parecer óbvia, mas sem a qual jamais teríamos o necessário embate
entre os que defendem a liberdade e os que promovem a tirania.
Fosso
Muita
coisa aconteceu desde aquele encontro de olavetes, proto-olaves e
futuros ex-olavetes no Bar Lagoa. Eu, por exemplo, depois de ver um
mendigo esvaziando os intestinos em pleno Aterro do Flamengo, virei
esquerdista por uma semana. Reneguei o indivíduo e, por consequência, o
que havia aprendido com Olavo de Carvalho. Recobrei a consciência
rapidinho, mas o estrago estava feito: nunca mais me relacionei de forma
pacífica com aquele grupo. Pior: nunca mais me relacionei de forma
pacífica com o indivíduo um tanto complicado demais que sou.
Com
a ascensão de Olavo de Carvalho ao estrelato intelectual, por assim
dizer, restou-me a tarefa esdrúxula de lidar com essa influência sem me
deixar contaminar pelo que via como uma caricatura agridoce. Por falar
em caricatura, sabe o que é mais curioso? Ontem mesmo, num texto que
ainda há de ser publicado, mencionei rapidamente o fato de os homens
interessantes, isto é, os homens esquisitos e cheios de idiossincrasias,
estarem desaparecendo. Olavo de Carvalho foi um desses homens. E agora
também ele desaparece.
A
tudo eu observava com uma sensação de orfandade – algo que já explorei
num texto recente. Via Olavo de Carvalho na TV, rádio e nas redes
sociais e ficava idealizando uma discrição que não combinava com a
personalidade dele. Ao me aproximar primeiro do libertarianismo e,
depois, do estoicismo, minhas diferenças em relação ao homem (mas não
necessariamente à obra) aumentaram. Mas não foram poucas as vezes em
que, em silêncio e um tanto quanto constrangido, tentei transpor esse
fosso. Sem sucesso.
Parêntese e fim do texto
(Um
parêntese necessário aqui. Escrevo este texto parando de vez em quando
para dar uma volta pela casa [sou peripatético] e espiar as redes
sociais. Entre as muitas mensagens de gratidão, me deparo aqui e ali com
manifestações de ódio. Os autores são os “humanistas” de sempre.
Aqueles que, sempre em grupo [até porque lhes falta a noção complexa de
individualidade], transformam a morte de Olavo de Carvalho num ritual
bárbaro de alegria infernal.
Diante
desse espetáculo, seria muito fácil ficar apenas indignado, revoltado
ou, vá lá, deprimido. Mas prefiro pensar que, mesmo morto, Olavo de
Carvalho conseguiu o improvável: fazer com que ateus, com sua
perversidade diabólica, fizessem referência à mortalha da transcendência
que um dia há de nos envolver a todos.
Também
prefiro pensar que os esquerdistas que dançam sobre o caixão de Olavo
de Carvalho estão dando uma grande lição à maioria sensata que ainda se
identifica com princípios cristãos: tripudiar sobre a morte do
adversário [ou inimigo] é coisa de canalha. Que não repitamos essa
atitude mais do que reprovável quando nossos adversários [ou inimigos]
adentrarem a embarcação de Caronte. Agora fecho o parêntese para
concluir o texto).
Numa
época em que não só os homens como também as ideias se tornaram
tediosamente homogêneas, ainda que se disfarcem de diversidade e até de
antagonismo, as idiossincrasias e as baforadas de cigarro de Olavo de
Carvalho farão falta. Assim como farão falta o olhar sempre muito
original sobre a realidade e até o humor – embora seja um humor um tanto
quanto raivoso para meu gosto.
E
fará falta sobretudo a defesa do indivíduo – do presidente da República
ao mendigo da esquina – como um ente autônomo e digno de respeito,
admiração e, por que não?, de espanto e compaixão. Na exata medida em
que ele se rebela contra o pensamento de grupo.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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