A extrema-esquerda ganha força em acontecimentos que parecem banais, mas que podem ser o prenúncio de uma tragédia. A crônica de Paulo Polzonoff para a Gazeta do Povo:
O
futuro aqui retratado é sombrio porque a realidade observável também é
sombria. Convém avisar aos leitores mais sensíveis a esse tipo de
pessimismo que, entre o presente reportado e o futuro imaginado, houve
incontáveis momentos de esperança que, por motivos que a crônica não
comporta explicar, não se concretizaram. O futuro aqui retratado, pois,
não é resultado apenas dos acontecimentos específicos que mencionarei ao
longo do texto; ele é resultado de muitos outros acontecimentos, uns
previsíveis e outros surpreendentes, para os quais a maioria achou
melhor, na época, dar de ombros.
Estou
falando do futuro no qual dois homens conversam sobre o que os levou
até ali. Mas pouparei os leitores de descrições mais detalhadas para que
eles não confundam o futuro imaginado, mas plausível, com mais uma
distopiazinha vulgar dessas que abundam por aí. Direi, porém, que um dos
personagens está reduzido a um amontoado de ossos e memórias confusas
que ele compartilha com seu companheiro de cela.
Sim,
de cela. Porque os dois estão presos. Como e quando essas prisões
aconteceram é difícil dizer. Faz tanto tempo! De uma coisa, porém, pode
ter certeza o leitor que chegou até aqui e que pretende continuar lendo
esta crônica que não quer fazer rir nem flutuar os espíritos muitos
pesados (não hoje): não houve “devido processo legal” nem qualquer
possibilidade de defesa ou absolvição.
Neste
inferno, os condenados não têm nome, dignidade ou esperança, mas têm
memória. E é disso que trata este texto que começou obtuso e assim vai
continuar, talvez seja o tempo chuvoso ou o almoço que não me caiu muito
bem. Nas memórias de um deles, que vou apelidar de Pavlovich, tudo
começou quando ele ligou a televisão e... É melhor deixar que ele
próprio conte a história. Afinal, este é o único prazer que lhe resta.
“Lembra
quando entrevistaram o stalinista na televisão? Chamaram de professor.
De intelectual. De grande influência. Eu avisei...”, começou Pavlovich,
pedindo para o narrador continuar porque lhe falta fôlego. Ofereço a ele
um copo d´água, me sentindo carcereiro de mim mesmo, e continuo falando
assim por algo daquele evento que todo mundo achou simples e banal, mas
que, sabemos no futuro que descrevo, prenunciava os muitos amontoados
de ossos encolhidos entre a própria imundície nas muitas celas dos
muitos campos de reeducação.
É
hora de o outro preso, o interlocutor silencioso e sem nome que muito
bem pode ser você, sim, você mesmo que está me lendo agora e se
perguntando “será que ele está falando comigo mesmo?”, entrar na
história. O outro preso fecha os olhos como se morresse ou refletisse –
nunca se sabe – e finalmente balbucia um “sim”. Ele não acrescenta mais
detalhes, nem precisa. Basta olhar ao redor para ver as consequências
muito palpáveis de ideias assassinas tratadas com naturalidade e ecoadas
em milhões de cabeças vazias como um sinal de “pluralidade”.
Não
por coincidência, no dia seguinte teve um vereador do PT que invadiu
uma igreja durante uma Missa. “Lembra?! Lembra?!”, pergunta e insiste um
agitado Pavlovich, a fim de que o interlocutor silencioso (sim, você
mesmo!) entenda a gravidade do fato. Mais uma vez assumo a narrativa
para contar que o vereador é militante “antirracista” e achou por bem
invadir uma igreja para defender que um crime bárbaro – a morte de um
migrante congolês no Rio de Janeiro - fosse vingado.
De
repente o interlocutor silencioso arregala uns olhões e pergunta para
Pavlovitch aonde ele quer chegar com essa história. O que uma coisa tem a
ver com outra? E o que essas memórias esparsas têm a ver com esse medo
de que a história se repita não como farsa, e sim como uma tragédia
ainda mais sanguinolenta do a dos gulags?
O
homem reduzido a um amontoado de ossos e algumas boas lembranças do
tempo em que os homens ocos eram apenas uma imagem pessimista num poema
de T. S. Eliot suplica que eu me manifeste. Que eu diga que nada daquilo
vai acontecer. Que é só o tempo, o almoço, a segunda-feira. Que o
stalinista vai cair no esquecimento e o vereador do PT perceberá o
tamanho do seu erro antes mesmo de ver surgirem os primeiros cabelos
brancos. Mas não posso dizer isso. Não posso mentir.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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