Além de ignorar os contornos da crise, ele tem um nível de imprevisibilidade muito perigoso nessas situações. Fernando Gabeira para o Estadão:
Bolsonaro
ficou conhecido por criar crises. Na sua única viagem internacional de
importância, ele escolheu a crise. Não foi criada por ele, possivelmente
não se interessa por suas coordenadas, mas, ainda assim, viaja para
Moscou para encontrar Putin. É uma viagem para discutir comércio. Eu
vendo carne, você vende fertilizante, o que mais podemos fazer?
O
problema é que tropas russas estão estacionadas na fronteira com a
Ucrânia. É um tema prioritário nos Estados Unidos e na Europa. Um clima
de tensão: invadem ou não invadem?
Putin
sabe o que quer e, sobretudo, sabe quando pressionar para manter a
Ucrânia sob sua influência. A Europa depende do gás russo, e nada mais
valioso do que um bom aquecimento no inverno.
Por
sua vez, Biden enfrenta um segundo grande desafio. O da retirada das
tropas do Afeganistão foi desgastante. Evitar uma invasão da Ucrânia não
é fácil. Mesmo porque os mecanismos de sanções econômicas nem sempre
são eficazes contra um país resiliente como a Rússia.
Bolsonaro
leva talvez um pouco mais do que a carne em sua agenda. Claro que ela é
importante, porque trata do interesse de seu grupo de apoio no
agronegócio. Mas os russos buscam gás na Amazônia e querem fabricar seus
helicópteros militares em Belo Horizonte.
Desde
2002, quando se formou uma parceria estratégica entre Brasil e Rússia,
ao menos sete áreas de cooperação tecnológica se abriram. Mas, ainda
assim, como explicar uma viagem dessas agora? Por mais carnívora que
seja a agenda, Bolsonaro é presidente de um país e será chamado a
declarar algo sobre um tema que mobiliza o mundo.
Quando
a Rússia anexou a península da Crimeia, o Brasil, na época sob o
governo Dilma, expressou uma posição prudente, sem se comprometer muito
com nenhum dos lados. Talvez seja esse o caminho de Bolsonaro. A
diferença é que agora Bolsonaro estará no cenário da crise, sob os olhos
do mundo. Uma saída realmente prudente seria adiar a viagem para tempos
mais calmos. Naturalmente, estará cercado de experientes diplomatas que
devem orientar seus passos. Mas, além de ignorar os contornos da crise,
Bolsonaro tem um nível de imprevisibilidade muito perigoso nessas
situações. É irônico que a política internacional do governo em fim de
mandato obrigue Bolsonaro a pisar em ovos. Até aqui ele fez inúmeras
bobagens. Rompeu a cooperação com a Alemanha e a Noruega na Amazônia,
jogando dinheiro e reputação no lixo. Investiu contra Macron, fez piadas
machistas sobre a primeira-dama francesa. Na América do Sul, fez
comentários inadequados sobre a Argentina e viu aos poucos se formar um
verdadeiro cinturão de esquerda em torno dele – Bolívia, Chile e Peru.
O
único ponto do mundo pelo qual se interessava abertamente, os Estados
Unidos, acabou precipitando seu isolamento. Apostou em Trump, perdeu.
Como se não bastasse a imprudência, seguiu duvidando da legítima eleição
de Biden.
Do
ponto de vista internacional, Bolsonaro está isolado. E quem está só,
abraçado a Putin, deve viver uma solidão bem mais gélida. Isso parece
ter sido também uma herança de Trump no universo mental bolsonarista. Os
setores tradicionais da extrema direita acham que na Rússia também
existem fontes de tradição que contestam a modernidade.
Steve
Bannon mantinha uma relação com um tradicionalista russo, Aleksandr
Dugin. Este via como necessária a recuperação da importância da Rússia
no mundo e achava os chamados isolacionistas nos Estados Unidos
potenciais aliados. Na eleição de 2016, a proposta de Dugin era a de
encorajar a Rússia a introduzir “a desordem geopolítica na atividade
interna dos Estados Unidos”. A verdade é que a participação da Rússia na
eleição de 2016 nos Estados Unidos foi um grande tema de investigação.
As relações entre o tradicionalismo russo e a extrema direita levaram
também a um longo debate entre Dogin e Olavo de Carvalho.
Não
se pode precisar até que ponto a Rússia, como a Hungria, pode ser vista
como uma aliada em bandeiras tradicionais pelo bolsonarismo.
Certamente, alguns temas de direitos humanos podem unir Bolsonaro e
Putin para além da carne e dos fertilizantes. O Brasil tem apoiado
propostas russas contrárias à expansão dos direitos das mulheres.
Paradoxalmente,
a agenda conservadora que Bolsonaro não conseguiu avançar no Congresso
brasileiro pode se tornar um tema de conversa na Rússia. E isto 105 anos
depois da revolução bolchevique. Não deixa de ser um reencontro. Em
1917, o Brasil rompeu relações com a Rússia precisamente por causa da
revolução. Em 1947, rompeu de novo por causa da ascensão do Partido
Comunista. São voltas que a história dá.
A
Rússia tornou-se atraente para a extrema direita, exatamente por alguns
dos fatores que pareciam ser atropelados pelos revolucionários. E o
Brasil se torna mais atraente para a Rússia, na medida em que se afasta,
pelo menos teoricamente, da globalização que considera uma vitória do
marxismo cultural.
O mais possível é que intensifiquem a troca de carne e fertilizantes. A de ideias não parece promissora.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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