A julgar pela realidade que vejo registrada nas paredes das cavernas digitais, a vida é uma interminável batalha entre malandros e otários. Paulo Polzonoff para a Gazeta do Povo:
Houve
um tempo em que o ritual era mais consistente. No último dia do ano, eu
me sentava e escrevia uma lista de planos para o ano vindouro. Tinha de
tudo: ler x livros, escrever y textos, me exercitar, comer melhor, ir
mais à igreja. Nos anos de desemprego eu incluía, logicamente, a busca
por um emprego. Nos anos de solteirice escrevia, negritava, sublinhava e
destacava em corres berrantes: arranjar namorada.
Nos
últimos anos, contudo, o ritual perdeu a solenidade e as minúcias, e
foi substituído por objetivos mais etéreos e elevados. Sabendo que Deus
sempre riu das minhas pretensões de querer controlar a vida, abandonei
os planos práticos e materialistas, preferindo me apegar a princípios
éticos e morais.
Foi
assim que no último dia de 2021, no pequeno intervalo entre o fim do
expediente e a abertura da primeira garrafa de espumante, me sentei por
trinta segundos na minha cadeira de balanço para desenhar um objetivo
que se resume a uma palavra: confiança. Confesso que, num arroubo
pré-etílico, cogitei até batizar a coisa toda de Projeto Príncipe
Michkin. Mas acho que ainda é cedo demais para confiar que não me
acusarão de ser pretensioso por causa de uma bobagem dessas.
Quatro
dias ano adentro, contudo, e já noto quão alto é este meu Everest.
Confiar deixou de ser algo natural; deixou de ser uma característica
inata do ser humano. Deixou de uma virtude admirável. Ao contrário, o
ato de confiar se transformou numa excentricidade tão ridícula quanto
usar gravata-borboleta ou se sentar numa cadeira de balanço para pensar.
Pior: vivemos num mundo que estimula a desconfiança o tempo todo.
Por
isso é que vivemos com um medo permanente de todos os que nos cercam,
dos políticos aos cientistas, passando pelos acionistas da indústria
farmacêutica; do verdureiro ao porteiro, passando pelo motorista do
Uber; e, nos casos mais graves, do melhor amigo à esposa, passando até
por nossos pais. Afinal, somos o tempo todo bombardeados por exemplos de
pessoas que confiaram no seu semelhante e que, por isso, foram
ludibriadas.
Malandros & otários
A
julgar pela realidade que vejo registrada nas paredes das cavernas
digitais, a vida é uma interminável batalha entre malandros e otários.
Mas, se for assim mesmo, quem disse que nos cabe apenas o papel de
malandros, espertos e algozes? Quem foi que inventou que esse é o
caminho para a glória e a imortalidade? Meu Deus, como é possível
almejar um mínimo de paz quando a vida se transforma num cansativo
conflito entre pessoas empenhadas a passar a perna uma na outra?
Neste
cenário, o mais provável é que as pessoas envolvidas nessa relação
doentia acabem no chão, cada qual tendo levado uma rasteira. Ambas
derrotadas, mas se julgando vencedoras. O que me traz a um aspecto
fundamental dessa argumentação: partindo do pressuposto de que o otário
faz aquilo que considera certo por princípio e, por isso, leva uma
rasteira do malandro, o que de fato ele perde (além do equilíbrio,
claro)?
Outro
dia (ou há muitos dias) li uma frase cujo autor não consigo lembrar.
Mas não é minha e, se eu lembrasse, pode confiar: tascava o nome dele
aqui mesmo que fosse um autor desses que a gente tem vergonha de citar.
Diz a frase que “o mundo é formado por algozes que se veem como vítimas e
têm inveja dos outros algozes”. Pode ser até uma generalização bastante
cruel, mas me pareceu bastante precisa, além de útil neste texto.
Substitua vítimas e algozes por otários e malandros e, voilà, veja a
mágica acontecer.
Eu
poderia agora dar uma de intelectual arrogante e dizer que é possível
romper com a relação mimética. Citar Girard. Falar de ciclos de
violência. Ou sei lá mais o quê. Mas é começo de ano e, não sei você,
mas eu já estou cansado e nada disposto a ficar interpretando mensagens
crípticas. Por isso direi apenas que meu plano para 2022 é confiar. É
cultivar uma espécie de ingenuidade intencional. Se vou parecer um
otário ao longo do processo, paciência. Prefiro o sono profundo dos
ingênuos à insônia atormentada dos espertalhões.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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