O cardápio é conhecido: destruir, remover ou vandalizar estátuas, pinturas, edifícios; reescrever e censurar a história num sentido unilateral e pré-determinado. João Tiago Proença para o Observador:
A
nova iconoclastia pretende instaurar em terra firme uma história sem
história. O pressuposto essencial de uma tal concepção não é novo. Bem
pelo contrário. Resume-se numa frase: a memória causa sofrimento. Assim
armado, quem sofre tem o direito de destruir a memória. Tudo se passa –
de princípio – com a boa consciência terapêutica de um médico à
cabeceira do doente: uma vez que o diagnóstico está feito, cumpre
aliviar o sofrimento e, se possível, suprimi-lo. Para tal impõe-se
rasurar a história, destruindo os artefactos culturais da memória. Essa é
a nova luta, que, aliás, só ganha pertinência precisamente depois de
conquistada a igualdade jurídica e alcançada uma certa igualdade de
condição económica, profissional, social, hábitos comuns, etc.
O
cardápio é conhecido: destruir, remover ou vandalizar estátuas,
pinturas, edifícios; reescrever e censurar a história num sentido
unilateral e pré-determinado, em vez de a deixar entregue às normas
científicas que constituem um domínio disciplinar, ou policiar a
linguagem – objecto fóbico ímpar. Os novos iconoclastas são como que
detectives à rebours, a sua tarefa consiste em procurar pistas,
averiguar indícios ou interrogar testemunhas não com o intuito de apurar
a verdade e assim poderem fazer um juízo informado, objectivamente
fundado, adulto, mas antes com o fito de destruírem as pistas,
distorcerem os indícios ou silenciarem as testemunhas. O passado será o
que o presente – muito narcisicamente – quiser. Sem resistências nem
obstáculos, sem uma referência objectiva que não dependa do fiat da
respectiva voluntas, acreditam ter recuperado a inocência de que foram
injustamente esbulhados. Por um lado, postulam desse modo a existência
reificada e não histórica de uma dada identidade, ignorando, ou fingindo
ignorar, que o aparecimento de novas identidades é inevitável. Por
outro, ao terraplanarem o passado, negam às identidades futuras
possibilidades patrimoniais de compreensão histórica, entronizando-se
assim como juízes últimos da história. O banho lustral de moralidade
revela o mais brutal egoísmo, a característica por excelência da
psicopatologia do tirano: é a medida de todas as coisas.
A
par do vandalismo programado, que têm por elemento negativo de efeitos
benéficos, algumas das novas lutas identitárias propõem novas obras,
novas histórias, novas palavras. Posto que se compreendem como lutas,
voltam-se par la nature des chosescontra quem consideram os responsáveis
do passado. Os opressores, os violentos, os discriminadores, – e quem
deles beneficiou – da escravatura à masculinidade tóxica, da
heteronormatividade ao especismo, todos eles terão de ser expostos,
denunciados, acusados. A arte aponta e materializa as feridas, amplia a
indignação e a nenhuma injustiça dá tréguas, com um só objectivo: que
nenhum culpado fique inulto. Em tudo isso, a arte e o activismo
entregam-se ao que antes pretenderam eliminar: a memória. Assim,
suprimir a recordação das injustiças do mundo só tem sentido porque elas
são históricas, aconteceram, e a acusação – as feridas – implica
necessariamente a conservação do passado que deve ser abolido. Trata-se
de um double bind: uma contradição insanável de duas injunções. Mas
neste caso não existe uma ilusão de alternativas, nem um terceiro que dá
ordens contraditórias. Trata-se antes de acomodar no interior de cada
sujeito exigências mutuamente exclusivas, mas que operam em circuito
fechado. O acto deliberado de esquecer é sempre uma memória e, por isso,
deita sal nas feridas, reavivando o sofrimento; tal como o acto
justiceiro nunca se poderá bastar do ponto de vista terapêutico, dado
que não se realiza sem a memória – para se alcançar o pretendido
exige-se o esquecimento não disto ou daquilo, mas da própria necessidade
de esquecer.
Como
se uma não bastasse, esta síndrome abarca outras contradições. Os
protestos com tanta ênfase lavrados não implicam qualquer risco pessoal,
decorrem o mais das vezes num ambiente seguro e acolhedor,
proporcionando até carreiras economicamente lucrativas e culturalmente
reconhecidas, como sucede, por exemplo, em tantos museus, centros
culturais ou fundações no mundo ocidental. Tais artistas não ousam
enfrentar as condições reais dos problemas de que se ocupam
artisticamente, fazendo valer as suas raízes, onde é possível retirar
benefícios, calam-se onde muitas vezes reinam condições desumanas, sem
qualquer comparação com os países onde vivem e trabalham. Muita da
mediocridade e monotonia artística de cunho identitário não provém de
uma limitação subjectiva, é sim causada objectivamente pelas relações de
produção. É um ganha-pão; de resto, così fan tutte. Tal sucede
precisamente porque aos profissionais da indignação respondem os
profissionais do remorso do homem branco, sempre prontos a estender a
mão. Com condições. À imagem de tantos antropólogos e dos cultores
sofisticados do exotismo, esta classe profissional é rebelde e revoltada
em casa de seus pais, conformista e servil em todas as outras; postulam
tacitamente uma harmonia pré-estabelecida entre as demais culturas e,
retumbantes, um mal radical apenas na sua. A falsidade de uma tal
posição não deixa de ser compreendida, ou, pelo menos, mais ou menos
vagamente sentida. Trata-se de uma esquizofrenia cuja origem é o
entendimento erróneo que isola os factores históricos no pressuposto de
que lhes pode dar resposta um a um. Mas isso é precisamente destruir a
trama da história, não por acidente mas na sua essência. Uma vez
realizada essa segregação, cada qual pode despedir-se à la carte da
história que constituiu essas identidades como tais – imitando as
crianças, escolherá apenas do que gosta. É o bilhete de entrada na
dimensão da consciência sem história. Contra o sofrimento, uma tal
consciência permite alcançar numa sobre-exigência e numa compensação
delirante um estatuto de omnipotência, de pureza nunca maculada pela
história, a que nutrem um horror sagrado. Dispensam-se assim do esforço
de compreenderem e, no mesmo movimento, de se compreenderem a si mesmos –
de tudo o que constitui a fons etorigo da arte e do património – e,
para restaurarem imaginariamente a unidade do ego, entregam-se a um
cogito duplamente satânico: o Eu odeio e odeio-me por isso deve poder
acompanhar todas as minhas representações.
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