quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Para que biologizar o debate público?

 



O que importa são os argumentos proferidos, não as características físicas de quem os proferiu. Lygia Maria para a FSP:


O antropólogo Antonio Risério publicou um artigo aqui nesta Folha sobre o racismo de negros contra brancos. Artigo polêmico, que recebeu críticas e elogios. O que chama a atenção é o número de críticas que não refutam os argumentos do texto e se limitam a: 1) chamar o antropólogo e o jornal de racistas; 2) invalidar o texto porque o autor é branco.

Até mesmo quem apontou esse aspecto vazio e preconceituoso de parte da crítica sofreu ataques, como Wilson Gomes, filósofo e professor da UFBA. Gomes foi chamado de branco (apesar de ser negro) e de "preto de estimação da Casa-Grande". No mínimo curioso que um artigo que aborde o racismo nos movimentos identitários acabe recebendo ataques racistas.

Em uma discussão racional, o aspecto biológico de um ente não ser serve para nada —a não ser sobre temas estritamente biológicos. Ser alto ajuda a jogar basquete, ser do sexo feminino ajuda a gerar bebês, brancos têm mais chances de desenvolver câncer de pele do que negros etc. Porém, na seara cognitiva e ética, ser alto, mulher ou branco não é fator importante. Há escassez de inteligência e de caráter em todas as cores e formatos.

Usar características biológicas como argumento contra as ideias de alguém, ou para falar da inteligência ou do caráter de alguém, é uma falácia retórica (argumentum ad hominem). Além disso, é uma atitude preconceituosa (racista, sexista etc.), e é disso que trata o artigo de Risério: se você só interpreta o mundo pela chave da raça, uma hora abrirá a porta do racismo.

Assim, negros podem ser racistas (como chamar Wilson Gomes de "preto de estimação da Casa-Grande" ou discordar de um texto apontando que o autor é branco). Mulheres também podem ser sexistas: em discussões sobre a legalização do aborto, por exemplo, é comum feministas dizerem "você só é contra porque é homem!". Ora, em um debate público, o importante são os argumentos proferidos, não as características físicas de quem os proferiu.

A biologização da argumentação pública trava o debate, fundamental em qualquer democracia, e perpetua visões de mundo discriminatórias. Muitos discordam, alegando o conceito de "racismo estrutural": só é racismo se há uma estrutura de poder (política, econômica, histórica) que o sustente.

Neste caso, seria impossível que negros sejam racistas. Porém, qual é a base, a pedra fundamental, do chamado "racismo estrutural" ou do "machismo estrutural"? É justamente a chave biológica, que reduz humanos dinâmicos a objetos estanques.

Seria melhor, então, que movimentos sociais, como o identitário, buscassem quebrar essa chave biológica para que possamos abrir novas portas, menos objetificadoras e, portanto, mais humanizadas.
 
BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

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