Na medida em que a influência de Bolsonaro sobre a religião se amplia, a sua autoridade moral no governo entra em declínio, até mesmo por estimular antagonismos nunca antes existentes entre as crenças. Artigo do desembargador Aloísio de Toledo César, publicado pelo Estadão:
Não
por força de suas históricas raízes católicas, mas antes pela conduta
polêmica e mesmo desastrosa do presidente Jair Bolsonaro, tem-se
observado no Brasil quase um preconceito ou uma reserva em relação aos
evangélicos. Será lastimável se isso vier a prevalecer, porque violenta o
sentimento de liberdade religiosa característico de nosso país.
Desde
nossa primeira Constituição, em 1924, em seu artigo 102, via-se a fé
religiosa declarada: “O Imperador, antes de ser aclamado, prestará nas
mãos do presidente do Senado, reunidas as duas Câmaras, o seguinte
juramento: Juro manter a Religião Cathólica Apostólica Romana, a
integridade e indivisibilidade do Império; observar e fazer observar a
Constituição Política da Nação Brazileira e mais Leis do Império, e
prover ao bem geral do Brazil, quanto em mim couber”.
Aquela
Constituição dizia, também, que “a pessoa do Imperador é inviolável, e
sagrada: Elle não sujeito a responsabilidade alguma. Os seus títulos são
Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brazil e tem o
tratamento de Majestade Imperial”.
A
despeito dessa adoção imperial da religião católica, o artigo 179, V,
da nossa primeira Constituição teve o cuidado de respeitar o sentimento
religioso: “Ninguém pode ser perseguido por motivo de religião, uma vez
que respeite a do Estado, e não ofenda a moral pública”.
Mesmo
em seu isolamento, relativamente à Europa, o Brasil sentiu os efeitos
da reforma protestante de Martinho Lutero e passou a conviver com outras
doutrinas cristãs. Tantas foram as seitas evangélicas surgidas nos
últimos tempos, por razões diversas, que acabou chamando a atenção de
número expressivo de brasileiros, sobretudo pelo fato de vários entre
seus pastores induzirem os crentes ao pagamento de um dízimo mensal,
chegando a até um décimo do salário.
Isso
resultou no enriquecimento de espertalhões e tisnou em parte a imagem
dessa fé cristã, da qual o presidente Jair Bolsonaro é ferrenho
defensor. Claro que o respeito pela religiosidade dos evangélicos
permanece e merece permanecer, mas a inclusão recente de um componente
político novo atua de forma diversa.
A
plenos pulmões, o presidente da República proclama que pretende formar
um Supremo Tribunal Federal (STF) povoado por evangélicos, e já
conseguiu nomear dois deles, num universo de 11, prometendo incluir mais
três, se lograr a reeleição.
Ora,
vincular a escolha de ministros a um sentimento religioso específico
equivale a tripudiar sobre as carreiras jurídicas e a desdenhar quanto à
aptidão para o exercício da atividade de julgar. Ao invés de escolher
ministros por sua competência e credibilidade, ele passou a vincular a
escolha pela premissa de ser evangélico, fato absurdo, porque equivale a
excluir como inaptos os católicos, judeus, muçulmanos e adeptos das
crenças de origem africana.
Sem
dúvida, essa conduta desaforada alcançou a imagem dos evangélicos, que
não têm culpa nenhuma pela preferência de Bolsonaro, e provavelmente
muitos deles talvez nem concordem com critério tão arbitrário. A rigor, a
tática do presidente divide as águas, como se evangélicos e os outros
religiosos estivessem em discordância ou antagonismo, fato que parece
nunca ter ocorrido anteriormente no Brasil.
Os
ministros que já compunham o Supremo Tribunal Federam antes de
Bolsonaro devem estar rindo, por saberem que o exercício da atividade
profissional de julgar exige capacitação jurídica específica, jamais uma
preferência religiosa merecedora de respeito, mas insuficiente para
avalizar merecimento. Desde sua criação, o Supremo Tribunal Federal
admitiu em seus quadros o acesso de juristas, independentemente de serem
religiosos ou não. Isso agora mudou.
Na
medida em que a influência de Bolsonaro sobre a religião se amplia, a
sua autoridade moral no governo entra em declínio, até mesmo por
estimular antagonismos nunca antes existentes entre as crenças. Os
judeus, que tanto sofrimento experimentaram ao longo dos séculos, os
muçulmanos e os católicos, agora considerados diferentes dos
evangélicos, talvez se sintam diminuídos.
Não
pode ser considerada saudável ou edificante a pretensão de exaltar ou
diminuir politicamente sentimentos religiosos, que por sua própria
natureza merecem simplesmente ser respeitados. Em verdade, a vocação
exaltada do presidente Jair Bolsonaro na escolha exclusiva de
evangélicos para o Supremo Tribunal Federal atua contra ele próprio e,
embora não desmereça os partidários dessa religião, coloca o carimbo de
inaptos naqueles que professam outra crença.
No
fim das contas, o presidente da República se coloca contra a maioria,
isso quando nos aproximamos do ano eleitoral e ele sonha em ser
reeleito. Os votos dos evangélicos, ou de outras religiões, isoladamente
computados, não o ajudarão a tanto.
DESEMBARGADOR APOSENTADO DO TJSP, FOI SECRETÁRIO DA JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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