Na antiga URSS o medo era de tal maneira forte e entranhado que as leis podiam dar-se ao luxo de ser tão democráticas e benévolas como agora as proclamações do Secretário-Geral das Nações Unidas. Jaime Nogueira Pinto para o Observador:
Há
trinta anos, no dia de Natal de 1991, às 19h32, hora de Moscovo, a
bandeira vermelha descia na frontaria do Kremlin e era substituída pela
bandeira tricolor da Rússia.
Gorbachev
anunciava publicamente que abandonava a liderança da União Soviética e
que cedia os seus poderes, na Federação Russa, a Boris Yeltsin.
Melancolicamente, lembrava os seus esforços reformistas e pacificadores
que, entretanto, tinham levado ao fim do Regime. No dia seguinte, a
Câmara Alta da URSS, o Soviete Supremo, reconhecia e referendava esses
factos.
Em
69 anos, e com muita culpa expiada e por expiar pelo caminho, a União
das Repúblicas Socialistas Soviéticas ficava muito aquém da prometida
nova sociedade de eternos “amanhãs que cantam.”
A
encarnação da alma da utopia comunista no corpo da velha Rússia
começara por ser um desafio à própria ciência marxista da História.
O
líder da revolução de Outubro não ficara à espera das condições
objectivas que George Plekhanov, o pensador do marxismo russo, indicara
como condições necessárias para uma revolução marxista: seguira a linha
de aventureiros, como Sergei Nechaev e Peter Tkachev, que sustentavam
que um pequeno grupo de revolucionários decididos podia assaltar e tomar
o poder na Rússia, sem esperar pelo amadurecimento do capitalismo.
Plekhanov
negava tal possibilidade. Ou melhor, admitia que, se tal sucedesse, o
resultado não seria uma harmoniosa sociedade socialista, mas o advento
de uma “casta socialista” que substituiria as elites czaristas, numa
sociedade de “comunismo patriarcal e autoritário”. Mudava a casta, mas
mantinham-se o jugo e a opressão. Lenine era, para ele, da “raça dos
Robespierre”: se os bolcheviques tomassem o poder, iriam impor uma
ditadura comunista. Plekhanov morreria de tuberculose em 1918, certo de
que assim seria – e só vira o princípio do filme.
Terror e reféns
No
Verão-Outono de 1918 começava o Terror Vermelho, com a liquidação de
reféns “burgueses”, como represália pelos atentados contra
personalidades bolcheviques. Depois do atentado contra Lenine, em
Moscovo, e contra Moisés Uritsky, chefe da Cheka de Petrogrado, 1300
reféns “burgueses”, “inimigos de classe” detidos em campos de
concentração, eram executados. Em Setembro-Outubro, mais de 10 mil
desses reféns eram mortos pela Cheka, a polícia política bolchevique. Em
poucos meses, o novo regime comunista tinha executado mais presos
políticos do que o czarismo entre 1825 e 1917.
O
terror sistemático marcou a natureza do partido e do regime que salvou.
A globalização do comunismo e o receio, na Europa, de que se repetisse a
história da Rússia, levaria a uma reacção autoritária preventiva e a
uma progressiva militarização da política em Outubro de 1922, com a
chegada ao poder, em Itália, do movimento fascista de Mussolini – que
depois inspiraria, em versão apocalíptica, o “Reich milenar” de doze
anos de Adolf Hitler.
A
morte e o processo de sucessão de Lenine saldaram-se com o triunfo de
Estaline, que manteve e reforçou o Grande Terror, nos anos 30, a partir
do assassinato de Kirov. No pós-estalinismo, os comunistas da Rússia e
de todo o mundo, incomodados com as acusações de violação dos direitos
humanos, procuraram responsabilizar Estaline – um “homem mau”, um tirano
perverso – pela corrupção e degeneração da utopia. O comunismo era bom,
mas havia comunistas maus, ou comunistas que não eram bem comunistas ou
que não eram comunistas convictos. Só que Estaline era um comunista
convicto, como recentemente o vem comprovar o historiador britânico
Geoffrey Roberts, em Stalin’s Library – A Dictator and his Books (com
publicação prevista para Fevereiro de 2022, pela Yale University Press).
A
profecia de Plekhanov realizou-se plenamente: estabeleceu-se uma
tirania comunista imposta pelo terror e assistiu-se à substituição de
uma elite privilegiada, a aristocracia czarista, pela classe dirigente
ou “velha-guarda” do Partido – os privilegiados, cuja existência Yuri
Slezkine descreve em The House of Government: A Saga of the Russian
Revolution (Princeton University Press, 2017). Mas o novo privilégio
instaurado era também ele temeroso da mão pesada de uma qualquer
inquisição que, em nome da pureza revolucionária, lhe pudesse cair em
cima. Como cairia, a partir de 1936 e dos processos de Moscovo,
transformando o privilégio de alguns num calvário de humilhação,
sofrimento, confissão e expiação.
Para
vencer a invasão alemã, Estaline ressuscitou o patriotismo do povo
russo e deu tréguas à Igreja Ortodoxa. No fim da guerra, pela força das
armas, estendia o comunismo – misturado com a hegemonia russa – aos
países de Leste, do Pacto de Varsóvia. E, em 1949, Mao ganhava a guerra
civil e o poder na China.
O
comunismo parecia imparável e o socialismo real aparecia como a utopia
igualitária das versões da propaganda. Mas não. Era, afinal, uma
autocracia, com uma classe política dominante, com o monopólio do poder,
da informação, dos privilégios e uma polícia política que vigiava e
punia a dissidência de pensamentos, palavras, actos e omissões. E na
ausência de economia privada e de sociedade civil, como poderes
independentes, era o poder político do Partido Comunista que tudo
controlava. E, no entanto, a Constituição de 1936, a Constituição de
Estaline, era generosa nas concessões de direitos humanos e poética na
linguagem.
O
medo era tão forte e entranhado na população, o medo geral dos
dirigentes e dos dirigidos, dos de cima e dos de baixo, que as leis
podiam então dar-se ao luxo de ser tão democráticas e benévolas como
agora as proclamações do Secretário-Geral das Nações Unidas.
Com
a morte de Estaline, após uma luta de oligarcas, o poder passou para
Kruschev, responsável pela repressão do levantamento popular húngaro.
Kruschev foi depois substituído por Brejnev, que governou quase 20 anos.
Seguiram-se, em breves intervalos, Andropov e Chernenko. Em Março de
1985 chegou Gorbachev que, ao retirar o medo da equação num regime
fundado no medo, levou ao colapso do comunismo e da URSS.
Primeiro,
foi a sua doutrina de não-intervenção nos países satélites: ao
contrário do que acontecera em Berlim, em 1953, em Budapeste, em 1956, e
em Praga, em 1968, Gorbachev retirou aos líderes comunistas do Pacto de
Varsóvia o apoio soviético para a repressão dos movimentos populares
internos. Assim, as resistências da Polónia, com o Solidariedade, e da
Hungria, ao abrirem as fronteiras no Verão de 1989, quebraram o tabu do
terror. Depois, foi a separação de algumas repúblicas soviéticas. E
finalmente, no contragolpe ao golpe dos ortodoxos do Verão de 1991, o
poder na Rússia caiu.
Depois
da queda, não faltaram sábios a proclamar a inevitabilidade do
acontecido. Mas a verdade é que foram muito poucos os futurólogos que
não eternizaram a URSS nas suas previsões. Emmanuel Todd que, em 1976,
publicara em França La Chute Finale – Essai sur la décomposition de la
sphère soviétique, foi a excepção. O livro de Todd constatava o fracasso
da economia soviética e analisava as estatísticas oficiais que, mesmo
que falseadas, não deixavam de revelar uma sociedade doente, com altos
índices de suicídio, de mortalidade infantil, de alcoolismo.
Culpa, autocrítica, confissão de incorrecção, expiação
Além
dos fracassos políticos, institucionais e económicos, a grande
vulnerabilidade da utopia era ser, precisamente, uma utopia aplicada: um
projecto de mudar pela força a natureza humana através de um sistema
político. O projecto foi denunciado desde o início por grandes
escritores: de Zamiatin, em Nós, a Bulgakov, em Margarida e o Mestre.
Não havia eu, havia nós; tudo o que não era ideologia, pensamento
correcto, linha do Partido, linha geral, não existia. A censura operava
por fora – os bolcheviques tinham começado logo por tomar conta das
tipografias e dos stocks e fábricas de papel e por controlar jornais e
editores – mas operava também, ou sobretudo, por dentro, inculcando o
medo, o sentimento de culpa, a interiorização da culpa, a autocensura, o
ímpeto inquisitório ou de denúncia cruzada de quem saísse da linha
correcta, da linha do Partido.
Para
Nikolai Berdyaev, em As Origens e o sentido do comunismo russo (1937),
as raízes da famosa autocrítica estalinista estavam na consciência do
homo sovieticus e na tradição do arrependimento penitencial cristão:
“Nenhum
povo do Ocidente viveu com tanta força as questões da penitência. Foi
na Rússia, precisamente entre as classes ditas privilegiadas, que nasceu
o tipo tão especial do ‘gentilhomme repentant’. Arrependido, não de uma
falta cometida pessoalmente, mas da falta geral, do pecado social.”
Há
exemplos famosos na história da literatura russa do século XIX: Nicolau
Gogol queimou o segundo volume de Almas Mortas por ordem do padre
Matvei Konstantinovsky, seu confessor; e Tolstoi, no final da vida,
exprimia uma espécie de complexo de culpa de classe, de culpa social,
perante os camponeses.
Com
a ortodoxia do socialismo e os seus inquisidores a manipularem a
burocracia das consciências no “paraíso na terra” em nome do
proletariado, os intelectuais e os dirigentes comunistas acusados de
desviacionismos exacerbaram esses sentimentos. Alguns, como os
condenados dos processos de Moscovo, fizeram-no sob tortura e para
tentar salvar as famílias; mas outros, muitos, interiorizaram o
escrúpulo de correção, pedindo perdão pela sua condição
pequeno-burguesa. Outros ainda, como o famoso Isaac Bábel, foram ao
ponto de renegar expressamente as suas obras principais.
Nos
tempos finais da URSS, em plena Perestroika, Vitali Chentalinski,
escritor e jornalista, conseguiu ter acesso aos processos dos
intelectuais e escritores nos arquivos da Lubianka e publicou um livro
sobre o tema, em França, em 1993. O livro, Les Esclaves de la Liberté –
Dans les Archives Litterairers du KGB, conta a saga dos escritores
presos e dos romances, diários íntimos e correspondência apreendidos e
destruídos. A autocrítica de Isaak Bábel, o romancista do regime
conhecido pelos seus clássicos Cavalaria Vermelha e Contos de Odessa, é
particularmente eloquente:
“Cavalaria
Vermelha serviu de pretexto para exprimir o meu péssimo humor, que não
tinha nada que ver com o que se passava na URSS. Daí as descrições
forçadas da crueldade e do absurdo da guerra civil, a introdução
artificial de elementos eróticos, uma sucessão de episódios turbulentos e
chocantes; bem como o total encobrimento do papel do Partido na
organização da grande Unidade do Exército Vermelho que foi o Primeiro
Exército de Cavalaria, formado por cossacos que não estavam ainda
eivados da consciência proletária (…) Quanto aos meus Contos de Odessa,
reflectiam o meu desejo de me afastar da realidade soviética, de opor ao
trabalho da sua construção quotidiana o mundo semi-mítico e pitoresco
dos bandidos de Odessa, cuja descrição romântica levaria,
involuntariamente, a Juventude Soviética a imitá-los.”
Em
Abril de 1939, preso e em busca de expiação, de purificação e de
perdão, Bábel, o “engenheiro de almas” socialista, fazia um derradeiro
apelo epistolar ao chefe da NKVD, o terrível Laurenti Béria:
“Cidadão
Comissário do Povo, durante a instrução, sem me poupar, movido
unicamente pelo desejo de purificação, contei os meus crimes (…)
Peço-lhe também que me autorize a esboçar o plano de um romance
relatando o itinerário (…) que me levou à perdição e aos crimes contra a
pátria socialista. Este livro surge no meu cérebro com um rasgo penoso e
impiedoso. Sinto que a dor da inspiração e das forças me voltam. E
queima-me a sede de trabalho, a sede de expiar, a sede de estigmatizar
esta vida que passei de maneira incorreta!”
Não
lhe valeu de muito. Depois de 72 horas de interrogatório, sob tortura,
acabaria por confessar-se membro da organização Trotsky e recrutado por
André Malraux para espiar para o governo francês.
Guardaram-no
no Segredo durante meses, reservando-o, talvez, para um qualquer
auto-de-fé do socialismo proletário, um processo de intelectuais
dissidentes, igual ao dos políticos e dos militares. Mas, a 26 de
Janeiro de 1940, foi subitamente julgado, condenado à morte e executado
na madrugada seguinte.
A sua morte foi mantida em segredo durante anos e a sua obra só seria reeditada na URSSS depois do Degelo kruscheviano.
Hoje,
trinta anos depois do anúncio do fim da União Soviética, e perante a
afirmação de uma nova ortodoxia da utopia e de uma nova linha geral da
correcção, o espírito e os métodos dos processos estalinistas parecem
ter renascido das cinzas ou dos arquivos da Lubianka, com os restauros
que o tempo e as circunstâncias impõem, para eivar dos novos dogmas o
cidadão comum, transformando-o num censor, num auto-censor, num
informador, num delator exemplar. Na nova burocracia da correcção, os
comissários políticos globais podem ser mais fluidos, mas revelam-se
igualmente hábeis na selecção dos desvios à linha geral, na
identificação das incorrecções, dos incorrectos e das vidas incorrectas,
na instrumentalização da culpa, da culpabilização, da censura e da
autocensura, na instigação à confissão, à acusação, à delação e à
condenação. E no silenciamento de tudo o que possa contradizer as
declarações humanitárias e as flores de retórica do melhor dos mundos.
A
História ensina-nos que é assim que se queimam memórias, escritos,
livros, vidas; que é assim que se verga e mata o espírito e se seca o
pensamento, sem que neutros e inclusivos amanhãs cantem. Mas o que é a
História para quem parece querer voltar a fazer do passado tábua-rasa?
blog orlando tambosi
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