Vinte anos depois, o PT tenta retornar ao poder conduzido pelo mesmo grupo assombrado por um fantasma: Celso Daniel. Silvio Navarro para a Oeste:
Há
20 anos, o grupo que comandava o Partido dos Trabalhadores, liderado
por José Dirceu, vislumbrou uma possibilidade real de colocar em prática
o seu projeto de poder no país. Com alguns arranjos políticos, muito
dinheiro surrupiado e uma estampa palatável para Lula, eles teriam
condições de chegar ao Palácio do Planalto depois de três derrotas
seguidas.
Naquela
época, além de Dirceu — para quem Lula entregou a faixa de capitão do
time logo depois de eleito —, o PT era conduzido pelo ex-guerrilheiro do
Araguaia José Genoino, o ex-seminarista Gilberto Carvalho, o
despachante Silvio Pereira e “a turma do ABC”, dividida entre a ala dos
sindicalistas, com Luiz Marinho e Vicentinho à frente, e os chamados
“intelectuais”, cujo expoente era Celso Daniel, ex-prefeito de Santo
André.
Dessa
lista, Celso Daniel foi o único que ficou pelo caminho. Era um quadro
discreto, respeitado no meio acadêmico — dava aulas na Pontifícia
Universidade Católica (PUC) e na Fundação Getulio Vargas (FGV) —, e
fizera da sua prefeitura um verdadeiro caixa de propina para o projeto
petista de poder — aos seus olhos, um roubo altruísta. Foi encontrado
morto na manhã de 20 de janeiro de 2002, dois dias depois de ter sido
sequestrado. O corpo estava cravejado por oito tiros numa estrada
vicinal em Juquitiba, às margens da Rodovia Régis Bittencourt.
Na
tarde seguinte, uma frase dita por Lula diante de uma multidão em luto
no enterro jamais saiu da cabeça dos investigadores do Ministério
Público e pesquisadores que estudaram o caso.
“Estou
convencido de que você, Celso Daniel, não foi vítima do acaso e que não
foi um incidente. Possivelmente, sua morte foi planejada e tem gente
graúda por trás disso”, disse
A quem Lula se referia quando falou em “gente graúda por trás disso”? Não se sabe, talvez nunca se saiba.
É
importante lembrar que, quatro meses antes, outro prefeito petista fora
assassinado: Antonio da Costa Santos, o Toninho do PT, que administrava
Campinas, no interior paulista. Ele foi baleado no dia 10 de setembro
de 2001. À época, o incidente só não ganhou repercussão maior porque, no
dia seguinte, a Al Qaeda, de Osama Bin Laden, derrubou o World Trade
Center, no atentado terrorista que mudou o mundo. A imprensa tinha um
assunto maior para cobrir.
Na
cidade de Campinas funcionava um esquema de corrupção similar ao de
Santo André e também ao de Ribeirão Preto (SP), cujo prefeito era
Antonio Palocci Filho. Não é exagero afirmar que era um petrolão em
menor escala: empresários e políticos petistas sócios num consórcio em
que o principal objetivo era a repartição da montanha de dinheiro
público.
Em
2005, a CPI dos Bingos, batizada de CPI do Fim do Mundo, revirou
histórias mal contadas sobre administrações petistas. Foi quando João
Francisco e Bruno, irmãos de Celso Daniel, relataram ter ouvido de
Miriam Belchior, ex-mulher do prefeito, e de Gilberto Carvalho, que R$
1,2 milhão foram entregues a José Dirceu.
João
Francisco interpelou Gilberto Carvalho: “Você se esqueceu que, naquele
dia, em casa, entre um pedaço de bolo e outro, você disse que tinha medo
de transportar tanto dinheiro para o José Dirceu num Corsa preto?”,
perguntou. “Sinto que sua alma está aprisionada.”
Fantasmas do PT
A
morte de Celso Daniel e a de Toninho do PT ficarão para sempre no
imaginário popular. Nos dois casos, foram tratadas como crimes urbanos,
cometidos por ladrões insignificantes que terminaram na cadeia — a
maioria está presa até hoje e o silêncio é regra. As testemunhas
morreram. Os mandantes nunca foram identificados. A trama política que
poderia ser o pano de fundo dessas histórias foi deixada de lado,
sabe-se lá se por conveniência ou por medo de espalhar demais o
braseiro.
O
terceiro prefeito citado, Antonio Palocci, virou sucessor de Celso
Daniel na coordenação da campanha de Lula dias depois do assassinato.
Chefiou o Ministério da Fazenda, a Casa Civil e só não está mais na cena
política porque derrapou duas vezes. Primeiro, ao comprar briga com um
simples caseiro de Brasília. Depois, por ter sumido com R$ 20 milhões do
caixa oculto da campanha de Dilma Rousseff.
O
fato é que esses laboratórios do petrolão deram certo e a turma toda se
deu bem num primeiro momento. Quando a onda passou, caíram, um a um,
por duas razões. Antes de mais nada, porque, para fazer o negócio
funcionar em grande escala, foi preciso recrutar os trambiqueiros de
Brasília, que não estavam nem um pouco interessados na doutrina
marxista-leninista de Delúbio Soares ou João Vaccari Neto. E porque,
como disse o ex-deputado Roberto Jefferson (PTB) ao ser implodido no
mensalão, “quem nunca comeu mel quando come se lambuza”.
20 anos depois
Beneficiados
por uma espiral de decisões de tribunais superiores, o grupo petista,
hoje “descondenado”, quer voltar a dar as cartas. A maioria das
condenações foi extinta pelo Supremo Tribunal Federal (STF) depois de
determinado o fim da prisão em segunda instância. Segundo um
levantamento do jornal O Estado de S.Paulo, extinguiram-se 277 anos em
penas, envolvendo 74 pessoas — não só de petistas, obviamente. A Justiça
Eleitoral também entendeu que Lula tem a ficha limpa. As tornozeleiras
eletrônicas foram retiradas. E a pandemia os recolocou, ao vivo, em
lives na internet. É possível assistir a Dirceu, Genoino e grande elenco
no YouTube atacando a Operação Lava Jato.
Contudo,
um detalhe importante chama a atenção: nessas aparições, cada vez mais
recorrentes, o PT ressurge in natura, sem a maquiagem dos marqueteiros
do passado, Duda Mendonça e João Santana. Fala-se abertamente tudo o que
precisou ser camuflado para chegar ao poder, há 20 anos.
Eis alguns exemplos da atual agenda eleitoral do PT:
1)
não haverá uma nova Carta aos Brasileiros — referência ao documento
assinado por Lula em 2002, que procurava acalmar banqueiros e
empresários;
2) o teto de gastos (compromisso de austeridade fiscal) será revogado;
3) as privatizações vão cessar ou serão revertidas;
4) fim da autonomia do Banco Central;
5) leis trabalhistas serão revistas — ou seja, a burocracia estatal pode ser amplificada, causando aumento no gasto público;
6) retomada do imposto sindical;
7) será implantado, finalmente, o controle social da mídia — pode chamar de censura que ele atende.
Não
é só. José Genoino também voltou à ativa depois da cadeia. E é na
teoria dele que mora o perigo. Genoino acredita que o que faltou ao PT
no passado foi dominar as Forças Armadas — como fez Hugo Chávez ao
nomear centenas de generais na Venezuela. Nas palavras do
ex-guerrilheiro do Partido Comunista Brasileiro, é preciso instaurar uma
“nova política de defesa no país” e “diminuir a reações militares”
(veja o vídeo no Twitter).
Genoino
se refere a uma das poucas reservas que a tropa petista manteve quando
esteve no poder: aparelhar o comando das Forças Armadas. Sempre que a
tentação ganhou força, o Palácio do Planalto interferiu e indicou um
nome considerado moderado, como o próprio ex-vice-presidente José
Alencar ou o ex-ministro do STF Nelson Jobim. Aparentemente, agora a
história é diferente.
Faltam
dez meses para as eleições. É bastante tempo. Mas uma coisa é certa: se
conseguir voltar, o PT vai voltar mais PT do que nunca.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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