Outra rodada de Lula x Bolsonaro, com certeza, nos manterá afundados no atraso por muitos anos, talvez décadas. Artigo do professor Bolívar Lamounier para o Estadão:
Tenho
procurado, mas ainda não encontrei alguém tranquilo quanto à disputa
presidencial em que nos iremos engajar dentro de dez meses.
Não
tendo a “terceira via” até agora dito a que veio (ou virá), o enredo
será igual ao de 2018. Teremos Lula pintando Bolsonaro como um
desequilibrado, Bolsonaro pintando Lula como ladrão e milhões de
brasileiros concordando em que ambos estarão certos. Nesse quadro, só os
muito obtusos não percebem quão escassa é a chance de conservarmos o
que nos resta de normalidade econômica, política e moral.
Relembremos
que, décadas atrás – com mistificações ideológicas recobrindo um tênue
fundo de verdade –, quisemos crer que nossa linha evolutiva seria mais
no sentido da civilização que no da barbárie. Euclides da Cunha quis
acreditar que éramos um país fadado a se civilizar. Que, no longo prazo,
nosso destino seria um convívio político pacífico, não um país
resvalando para a rispidez e a violência; para a ordem e o progresso,
não para a desordem e o regresso. Hoje, se tivermos juízo, devemos olhar
para trás com tristeza e para a frente com preocupação, muita
preocupação, porque outra rodada de Lula x Bolsonaro, com certeza, nos
manterá afundados no atraso por muitos anos, talvez décadas.
A
afirmação acima não é arbitrária. Não resulta de uma incorrigível
propensão ao cassandrismo. Resulta da simples constatação de que não
foram processos culturais espontâneos, uma microtrama social que mal
chegamos a compreender, o que nos fez sair dos trilhos. Foi uma
espantosa sequência de desatinos perpetrados pelos principais líderes
políticos, como tratarei de exemplificar em seguida.
Em
1930, ao chegar ao Rio de Janeiro, Getúlio Vargas com certeza revirava
os escaninhos de sua mente em busca de uma imagem do poder que acabara
de conquistar pela força, e logo se encantou com a cena dos cavalos
gaúchos apascentando-se ao redor do obelisco. A ideia do “mando”, ali à
sua frente, bem concreta, deve ter lhe parecido mais palatável que a de
reinstalar imediatamente as abstrações de um Estado constitucional.
Procrastinando o retorno do País à normalidade jurídica, instigou São
Paulo à luta armada e, pior, deixou entrever um veio profundo de sua
índole política. Estava plantada nossa primeira polarização. A divisão
do País em duas partes rancorosas.
Em
novembro de 1937, valendo-se da popularidade que granjeara ao suprimir a
intentona comunista, Getúlio decretou o autogolpe, outorgou uma
Constituição de brincadeirinha e saiu calmamente para um jantar na
embaixada da Argentina. Em 1948, indagado pelo jornalista Samuel Wainer
sobre o papel que esperava desempenhar na eleição presidencial de 1950,
ele respondeu: “Voltarei, mas não como político. Voltarei como líder de
massas”. Tal frase dispensa interpretação. Aí está dito, com todas as
letras, que a imagem dos cavalos ao redor do Obelisco não lhe saíra da
cabeça; sagrado pelas urnas, não hesitaria em atropelar as instituições.
Ocorre
que, uma vez rompido o fio invisível da normalidade política, a
contraposição não tarda a se manifestar. Investindo-se de imediato na
posição de contraponto antigetulista, Carlos Lacerda replicou com
estardalhaço em seu jornal: “O sr. Getúlio Vargas não deve se candidatar
à presidência da República. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não
deve ser empossado. Empossado, devemos fazer de tudo para derrubá-lo”.
O que acima vai dito e mais o onipresente veneno da guerra fria são suficientes para relembrar os anos 50 do século passado.
Em
1961, o desmiolado Jânio Quadros renunciou à suprema magistratura,
nutrindo a fantasia de que voltaria nos braços do povo, livre das
amarras constitucionais. Ficou dependurado numa teia de aranha, mas o
resultado de sua loucura, como sabemos, foi outro desatino: o veto de
uma parte das Forças Armadas à posse de João Goulart, legitimamente
eleito como vice-presidente. O espectro da guerra civil foi afastado por
uma fórmula parlamentarista moderada, a ser submetida a plebiscito em
1965. Inconformado com as diáfanas restrições a que o parlamentarismo
supostamente o submetia, Goulart manobrou dia sim e outro também para se
livrar dela, antecipando o plebiscito para janeiro de 1963, no qual
teve êxito. Desfeita, assim, a conciliação de 1961, Jango deixou-se
encantar pela sugestão que lhe levaram alguns conselheiros: plenamente
reintegrado na função presidencial, cumpria-lhe dar uma satisfação ao
País. Essa foi a origem das reformas sem pé nem cabeça que tentou pôr em
prática, radicalizando outra vez o quadro político.
Essa
cascata de desvarios levou ao golpe militar que durou 21 anos e do qual
só conseguimos sair graças à ação de líderes moderados e hábeis. Em
seguida, o governo Fernando Henrique operou o milagre de controlar uma
superinflação que já durava 33 anos. A transição para o governo Lula foi
ordeira, tranquila e racional. Mas Lula, como sabemos, é uma mescla de
dr. Jekyll e mr. Hyde; Bolsonaro é o que é. Esta, caros leitores e
leitoras, é a passarela. Deixemos a banda passar.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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