domingo, 30 de janeiro de 2022

Cala a boca já viveu

 



Tenho lugar de fala: perdido entre jornalistas que pedem censura e os que aplaudem censores, eu sou um Bernard Max. Mário Sabino para a revista Crusoé:


Publiquei na quarta-feira, em O Antagonista, um artigo sobre a censura que uma penca de jornalistas da Folha quer impingir ao antropólogo Antonio Risério, por causa de suas críticas ao identitarismo — censura extensiva a quem ousar discordar dos dogmas importados das catedrais universitárias americanas. Os 191 bravos rapazes e moças fizeram um abaixo-assinado, com o ineditismo de mais 17 signatários anônimos, expressando a sua “preocupação” com o espaço que o jornal estaria dedicando ao “racismo”. Foram muito aplaudidos em outras redações, no que é mais um sinal indecoroso de que a vaca está indo para o brejo. A tolice e a desonestidade intelectual nunca se apresentaram tão irmanadas. Em resposta ao abaixo-assinado, 186 cidadãos, entre os quais professores universitários, escritores, profissionais liberais e jornalistas, lançaram uma carta aberta em defesa de Antonio Risério e contra o identitarismo.

Eis o texto da resposta aos censores que dão expediente na Folha (retomo em seguida):

“Nos últimos quatro meses, o antropólogo baiano Antonio Risério foi alvo de duas reações de parte da classe intelectual nacional por suas obras sobre raça. Em setembro de 2021, seu livro As Sinhás Pretas da Bahia: Suas Escravas, Suas Joias foi resenhado por Leandro Narloch. A resenha atraiu não apenas críticas, mas chamados pela demissão de Narloch, a quem muitos atribuíram o conteúdo do livro. Não há, ao contrário do que dizem esses críticos, nenhum delito moral no livro ou em sua resenha: Risério, que escreve há décadas sobre o assunto, divulga pesquisas a respeito de personalidades reais da história brasileira que complexificam o modo como entendemos as relações sociais da época da escravidão.

Nos escritos de Risério, que é um dos melhores leitores vivos da nossa cultura, está claro que ele considera a escravidão uma instituição moralmente repugnante, e que ele busca entender como seres humanos que não são monstros poderiam ter convivido com ela no passado. É preciso fôlego para entender como ex-escravos se tornavam senhores de escravos. Risério tem esse fôlego; seus canceladores, não.

Na segunda polêmica, Risério publicou na Folha de S. Paulo um artigo a respeito da universalidade do erro moral que é o racismo, documentando casos em que negros foram, sim, racistas. Falamos ‘racismo’ segundo a definição clássica, do senso comum e do bom senso, registrada em dicionários. Um dos projetos intelectuais do autor, a oposição ao pós-modernismo e à teoria crítica, que fundaram o identitarismo, o leva a essa condenação. Os identitários querem alterar à força, unilateralmente e sem consultar os falantes da língua, a definição de ‘racismo’ de forma a fazê-lo unidirecional e maleável a seus interesses, alegando que é ‘relação de poder’.

Esta disputa vai além de uma mera querela semântica a respeito da definição de uma palavra. É um ataque novo ao tratamento igual dos indivíduos perante as normas sociais que herdamos do consenso pós-guerra que nos deu uma Declaração Universal dos Direitos Humanos. Risério é uma voz experiente do segundo campo, suas preocupações são mais que justificadas, e nos posicionamos firmemente contra tentativas de censurá-lo.

O mal-estar que Risério causa é absolutamente necessário para que os identitários, antiuniversalistas, relativistas e revanchistas saibam que a oposição existe e não será dobrada, não importa quantas grandes empresas tenham ao seu lado em sua cruzada pela desigualdade moral. Não se trata de colecionar casos em que negros foram senhores de escravos ou cometeram racismo contra pessoas não-negras: trata-se de reafirmar que ninguém é inerentemente bom ou mau por causa da cor, então ninguém tem carta branca para desumanizar ninguém. Antonio Risério é no momento uma das vozes mais importantes do país, sobretudo por fazer oposição a uma ideologia intolerante e autoritária. Manifestamo-nos com um apelo para que sua livre expressão seja respeitada.”

O que a Folha vai fazer com os jornalistas censores — se é que fará alguma coisa — é problema dela, não meu. Só posso esperar que honre a memória de Otavio Frias Filho, um intelectual que nunca cerceou o debate. O ponto aqui ultrapassa os assuntos internos do jornal.

O ponto é que, como disse no meu artigo para O Antagonista, “se o bolsonarismo apropriou-se indevidamente de pautas que merecem ser questionadas, como as sanhas do politicamente correto e da visão identitária do mundo, isso não pode servir de pretexto para que se cancele a liberdade de expressão e a livre circulação de ideias”. É o que a esquerda brasileira faz diligentemente, aproveitando a oportunidade que o sociopata instalado no Palácio do Planalto lhe deu: todo o ideário que conflita com o dela passou a ser tachado de “bolsonarista”. É um epíteto concreto e, portanto, bem mais eficaz do que a tática tradicional — a de classificar genericamente todo e qualquer opositor ideológico de “extrema-direita”.

A apropriação indébita cometida por Jair Bolsonaro e seus asseclas transformou em “bolsonarista” — e, assim, alvo de execração — o brasileiro ajuizado que:

— Comunga dos princípios do liberalismo econômico;

— Acha que lugar de bandido é na cadeia;

— Nutre aversão por corruptos;

— Critica a jurisprudência de ocasião dos tribunais superiores;

— Acha que inquérito aberto de ofício pelo Supremo Tribunal Federal é uma enormidade;

— Alarma-se que, em nome da democracia, sejam decretadas prisões arbitrárias e praticados atos de censura oficiais;

— Espanta-se com o bombardeio autoritário das pautas identitárias nas escolas, nos meios de comunicação e nas empresas e acredita que elas trazem ainda mais divisões na sociedade. Detalhe: não é preciso ser um conservador para espantar-se;

— Teme a doutrinação nas escolas e universidades;

— Constata que a Lei Rouanet foi desvirtuada para financiar artistas ricos e os departamentos de marketing de grandes empresas.

Tudo isso parece razoável e é razoável, mas ai de você se expressar esses seus pontos de vista em qualquer contexto. Apontam-lhe o dedo: “Bolsonarista!”.

O que fazer, então, diante desse quadro contaminado? Intimidar-se com a pecha e aceitar passivamente que a esquerda o desqualifique, com a desonestidade que lhe é peculiar? Resignar-se com o fato de ideias certas estarem em bocas erradas, de uma direita grotesca que as distorce? Não posso julgar quem se abstém. A maioria esmagadora das pessoas tem afazeres e necessidades mais prementes do que o bom combate ideológico e a defesa da democracia que não prende e arrebenta. Cabe-me somente alertar que, num dia não tão distante assim, você poderá acordar e perceber que um nada admirável mundo novo o engoliu de vez. Um mundo em que a liberdade ficará sem pai nem mãe, todos reféns de uma engenharia social parecida com aquela imaginada por Aldous Huxley. Tenho lugar de fala: perdido entre jornalistas que pedem censura e os que aplaudem censores, eu sou um Bernard Max.

Cala a boca já viveu.
 
BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

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