Tenho lugar de fala: perdido entre jornalistas que pedem censura e os que aplaudem censores, eu sou um Bernard Max. Mário Sabino para a revista Crusoé:
Publiquei na quarta-feira, em O Antagonista, um artigo sobre a censura que uma penca de jornalistas da Folha quer impingir ao antropólogo Antonio Risério,
por causa de suas críticas ao identitarismo — censura extensiva a quem
ousar discordar dos dogmas importados das catedrais universitárias
americanas. Os 191 bravos rapazes e moças fizeram um abaixo-assinado,
com o ineditismo de mais 17 signatários anônimos, expressando a sua
“preocupação” com o espaço que o jornal estaria dedicando ao “racismo”.
Foram muito aplaudidos em outras redações, no que é mais um sinal
indecoroso de que a vaca está indo para o brejo. A tolice e a
desonestidade intelectual nunca se apresentaram tão irmanadas. Em
resposta ao abaixo-assinado, 186 cidadãos, entre os quais professores
universitários, escritores, profissionais liberais e jornalistas,
lançaram uma carta aberta em defesa de Antonio Risério e contra o identitarismo.
Eis o texto da resposta aos censores que dão expediente na Folha (retomo em seguida):
“Nos
últimos quatro meses, o antropólogo baiano Antonio Risério foi alvo de
duas reações de parte da classe intelectual nacional por suas obras
sobre raça. Em setembro de 2021, seu livro As Sinhás Pretas da Bahia:
Suas Escravas, Suas Joias foi resenhado por Leandro Narloch. A resenha
atraiu não apenas críticas, mas chamados pela demissão de Narloch, a
quem muitos atribuíram o conteúdo do livro. Não há, ao contrário do que
dizem esses críticos, nenhum delito moral no livro ou em sua resenha:
Risério, que escreve há décadas sobre o assunto, divulga pesquisas a
respeito de personalidades reais da história brasileira que
complexificam o modo como entendemos as relações sociais da época da
escravidão.
Nos
escritos de Risério, que é um dos melhores leitores vivos da nossa
cultura, está claro que ele considera a escravidão uma instituição
moralmente repugnante, e que ele busca entender como seres humanos que
não são monstros poderiam ter convivido com ela no passado. É preciso
fôlego para entender como ex-escravos se tornavam senhores de escravos.
Risério tem esse fôlego; seus canceladores, não.
Na
segunda polêmica, Risério publicou na Folha de S. Paulo um artigo a
respeito da universalidade do erro moral que é o racismo, documentando
casos em que negros foram, sim, racistas. Falamos ‘racismo’ segundo a
definição clássica, do senso comum e do bom senso, registrada em
dicionários. Um dos projetos intelectuais do autor, a oposição ao
pós-modernismo e à teoria crítica, que fundaram o identitarismo, o leva a
essa condenação. Os identitários querem alterar à força,
unilateralmente e sem consultar os falantes da língua, a definição de
‘racismo’ de forma a fazê-lo unidirecional e maleável a seus interesses,
alegando que é ‘relação de poder’.
Esta
disputa vai além de uma mera querela semântica a respeito da definição
de uma palavra. É um ataque novo ao tratamento igual dos indivíduos
perante as normas sociais que herdamos do consenso pós-guerra que nos
deu uma Declaração Universal dos Direitos Humanos. Risério é uma voz
experiente do segundo campo, suas preocupações são mais que
justificadas, e nos posicionamos firmemente contra tentativas de
censurá-lo.
O
mal-estar que Risério causa é absolutamente necessário para que os
identitários, antiuniversalistas, relativistas e revanchistas saibam que
a oposição existe e não será dobrada, não importa quantas grandes
empresas tenham ao seu lado em sua cruzada pela desigualdade moral. Não
se trata de colecionar casos em que negros foram senhores de escravos ou
cometeram racismo contra pessoas não-negras: trata-se de reafirmar que
ninguém é inerentemente bom ou mau por causa da cor, então ninguém tem
carta branca para desumanizar ninguém. Antonio Risério é no momento uma
das vozes mais importantes do país, sobretudo por fazer oposição a uma
ideologia intolerante e autoritária. Manifestamo-nos com um apelo para
que sua livre expressão seja respeitada.”
O
que a Folha vai fazer com os jornalistas censores — se é que fará
alguma coisa — é problema dela, não meu. Só posso esperar que honre a
memória de Otavio Frias Filho, um intelectual que nunca cerceou o
debate. O ponto aqui ultrapassa os assuntos internos do jornal.
O
ponto é que, como disse no meu artigo para O Antagonista, “se o
bolsonarismo apropriou-se indevidamente de pautas que merecem ser
questionadas, como as sanhas do politicamente correto e da visão
identitária do mundo, isso não pode servir de pretexto para que se
cancele a liberdade de expressão e a livre circulação de ideias”. É o
que a esquerda brasileira faz diligentemente, aproveitando a
oportunidade que o sociopata instalado no Palácio do Planalto lhe deu:
todo o ideário que conflita com o dela passou a ser tachado de
“bolsonarista”. É um epíteto concreto e, portanto, bem mais eficaz do
que a tática tradicional — a de classificar genericamente todo e
qualquer opositor ideológico de “extrema-direita”.
A
apropriação indébita cometida por Jair Bolsonaro e seus asseclas
transformou em “bolsonarista” — e, assim, alvo de execração — o
brasileiro ajuizado que:
— Comunga dos princípios do liberalismo econômico;
— Acha que lugar de bandido é na cadeia;
— Nutre aversão por corruptos;
— Critica a jurisprudência de ocasião dos tribunais superiores;
— Acha que inquérito aberto de ofício pelo Supremo Tribunal Federal é uma enormidade;
— Alarma-se que, em nome da democracia, sejam decretadas prisões arbitrárias e praticados atos de censura oficiais;
—
Espanta-se com o bombardeio autoritário das pautas identitárias nas
escolas, nos meios de comunicação e nas empresas e acredita que elas
trazem ainda mais divisões na sociedade. Detalhe: não é preciso ser um
conservador para espantar-se;
— Teme a doutrinação nas escolas e universidades;
— Constata que a Lei Rouanet foi desvirtuada para financiar artistas ricos e os departamentos de marketing de grandes empresas.
Tudo
isso parece razoável e é razoável, mas ai de você se expressar esses
seus pontos de vista em qualquer contexto. Apontam-lhe o dedo:
“Bolsonarista!”.
O
que fazer, então, diante desse quadro contaminado? Intimidar-se com a
pecha e aceitar passivamente que a esquerda o desqualifique, com a
desonestidade que lhe é peculiar? Resignar-se com o fato de ideias
certas estarem em bocas erradas, de uma direita grotesca que as
distorce? Não posso julgar quem se abstém. A maioria esmagadora das
pessoas tem afazeres e necessidades mais prementes do que o bom combate
ideológico e a defesa da democracia que não prende e arrebenta. Cabe-me
somente alertar que, num dia não tão distante assim, você poderá acordar
e perceber que um nada admirável mundo novo o engoliu de vez. Um mundo
em que a liberdade ficará sem pai nem mãe, todos reféns de uma
engenharia social parecida com aquela imaginada por Aldous Huxley. Tenho
lugar de fala: perdido entre jornalistas que pedem censura e os que
aplaudem censores, eu sou um Bernard Max.
Cala a boca já viveu.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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