A crise da arte chegou aqui: já não discutimos o objeto em si, mas as identidades dos artistas e a necessidade de as regras no mundo da arte responderem a exigências identitárias. Patrícia Fernandes para o Observador:
Dados
os exemplos, não é difícil compreender a longa polémica em torno da
arte contemporânea e o seu desvio dos tópicos que ocuparam os filósofos
da época moderna, com as ideias de belo e sublime a ficarem relegadas
para segundo plano. Ainda assim, continuámos no domínio daquilo que
designamos como reflexão estética e que tem como alvo o objeto
artístico. Não que isso seja fácil de definir. Os estudantes de
filosofia sabem que a questão estética central é, precisamente, a de
saber o que é a arte.
Se, até ao final do século XIX, arte era entendida como representação,
desde então as ideias de emoção e forma disputaram a sua definição:
estaríamos perante um objeto de arte se ele for capaz de clarificar e
individualizar emoções específicas (R. G. Collingwood) ou apresentar uma
forma significante (Clive Bell e o formalismo do Bloomsbury Group).
O
momento sísmico de Duchamp abriu brechas no entendimento formalista que
era prevalecente na crítica artística; no entanto, foi o período entre
guerras a reconfigurar o entendimento de arte: esta passou a determinar a
imagética dos movimentos totalitários e a ser utilizada como meio de
propaganda política. Gabriele D’Annunzio é disso um bom exemplo,
inaugurando o movimento protofascista. Mas pensemos igualmente em Filipo
Tomaso Marinetti e as ligações entre futurismo e fascismo italiano;
Sergei Eisenstein e o cinema soviético; ou Leni Riefenstahl e Albert
Speer, com os seus contributos para o regime nazi. George Orwell, no
ensaio “As fronteiras entre a arte e a propaganda”, diz-nos que este período
“prestou um grande serviço à crítica literária, porque destruiu a ilusão do esteticismo puro. Relembrou-nos que a propaganda, de um modo ou de outro, se esconde em todo o livro, que toda a obra de arte tem um significado e um propósito – político, social e religioso – e que os nossos juízos estéticos são sempre afetados pelos nossos preconceitos e crenças. Pôs a nu a arte pela arte.”
Contudo,
ele conduziu-nos, simultaneamente, a um beco sem saída, pois gerou uma
resposta filosófica perversa, representada pelas palavras de Walter Benjamin: “Essa é a situação da estetização da política que o fascismo pratica. O comunismo responde-lhe com a politização da arte.”
Foi
esta politização da arte a marcar as últimas décadas no ocidente, com
uma subordinação do objeto estético a funções políticas, e que tem sido
particularmente explorada pelos movimentos políticos que, desde os anos
60 do século XX, vêm defendendo o princípio de que o pessoal é político.
As consequências ao nível artístico são evidentes: o valor do objeto
passa a estar no propósito político que ele visa e não na competência
artística.
Esta tendência é particularmente evidente no cinema e o recente filme português Listen revela-se um bom exemplo: premiado na 77.ª edição do Festival de Veneza,
o seu reconhecimento é justificado pela abordagem às questões sociais e
reforçado com o destaque dado pela própria realizadora às questões
levantadas pelo filme. Esta valorização política do cinema transformou a
noção de sétima arte e tem legitimado a produção de filmes de ativismo
social, com um descurar das competências técnicas dos intervenientes – o
que interessa é o modo como os filmes podem contribuir para a luta
social. A crítica mordaz de Woody Allen àquilo em que o cinema se tornou
é quase sempre certeira… Mas o impulso para pensar o cinema atual como
instrumento de sensibilização política e meio de ação social parece
quase inconsciente, como se os realizadores se sentissem compelidos a
cumprir esse papel, perdendo com isso a própria irreverência artística.
Notemos
agora a segunda consequência problemática que decorre da politização da
arte: ao mesmo tempo que há uma desvalorização do objeto enquanto
objeto artístico, o foco da atenção passa gradualmente para a identidade
do sujeito que apresenta o objeto. O cinema encheu-se de quotas e a
atribuição de prémios passou a ser avaliada a partir da identidade das
pessoas premiadas. A lógica é sempre a mesma: todas as dimensões da vida
pertencem à esfera política pelo que a luta pela justiça social deve
sobrepor-se a tudo, até mesmo ao mérito artístico.
No caso recente da escolha do artista para representar Portugal na Bienal de Veneza,
os problemas convocados por esta politização da arte tornam-se
evidentes. O concurso parece ser mais uma trapalhada do governo, tendo
gerado críticas generalizadas quanto a prazos, regras e mecanismos. Mas
os artistas e os curadores concorreram tendo conhecimento das regras
estabelecidas e aceitaram-nas no momento da candidatura. Naturalmente,
os derrotados têm legitimidade para recorrer do resultado se entenderem
que as regras não foram cumpridas – no entanto, a polémica que tem
ocupado o espaço público é outra: dentro da lógica identitária e
antissistema, o que se tem questionado é o facto de as regras
previamente estabelecidas não terem conduzido ao resultado que foi
pré-definido por aqueles que têm contestado a decisão final do concurso.
A crise da arte chegou aqui: já não discutimos o objeto em si, mas as
identidades dos artistas e a necessidade de as regras no mundo da arte
responderem a exigências identitárias. E este concurso revela a lógica
perversa da dinâmica identitária: na verdade, todos os concorrentes
pertencem, de uma maneira ou de outra, a grupos identitários defendidos
pelo movimento de justiça social – ainda assim, permanece a recusa pelas
regras do jogo que não determinem a decisão considerada justa, dando
origem a uma avaliação subjetiva que se pretende naturalizada.
O resultado é uma política do ressentimento, que serve apenas para
esconder a incapacidade de lidar com a frustração da derrota.
Como já assinalámos,
o efeito redentor do argumento de justiça social é poderoso: afinal,
quem é que está contra a justiça social? Mas a proposta identitária de
justiça social é perigosa e profundamente iliberal. É iliberal, porque
não admite pluralismo nem espaço de dissidência: mesmo aqueles que, de
boa-fé, pareciam posicionar-se como seus aliados são rapidamente
abalroados quando questionam os seus princípios. Assim, antigos aliados tornam-se rapidamente inimigos,
acusados de todas as malícias que antes cabiam aos adversários mais
puros. E é perigosa, porque consubstancia uma visão totalitária da vida.
Essa visão totalitária decorre da própria supressão das fronteiras
entre esfera pública e esfera privada quando afirmamos que o pessoal é
político. Ao fazê-lo, eliminamos a possibilidade da diferença, da
criatividade e da crítica livres e da arte como objeto de beleza e
admiração, porque tudo o que fazemos deve subordinar-se à lógica
política. Como diz Orwell, “não podemos realmente sacrificar a nossa
integridade intelectual em nome de um credo político – ou pelo menos não
podemos fazê-lo e permanecer escritores”.
E não deixa de ser assinalável que, oitenta anos depois de Orwell ter refletido no ensaio “Literatura e Totalitarismo”
sobre a (im)possibilidade da literatura em contexto totalitário,
tenhamos regressado ao mesmo tipo de reflexão. Isto revela como a deriva
politizadora e identitária repete a mesma lógica da utilização da arte
por parte dos regimes totalitários do século XX – pelo que devemos acautelar-nos da sua entrada pela porta principal e não saudá-la candidamente.
Na
verdade, ainda que possamos reconhecer as limitações da ideia de arte
pela arte, começa a sentir-se uma ânsia crescente por uma lufada de ar
fresco que nos liberte desta visão claustrofóbica da vida e que liberte a
arte da opressão politizadora. Uma lufada de ar fresco que nos traga um
pouco do espírito de Oscar Wilde:
“Podemos perdoar um homem que faça uma coisa útil, desde que não a
admire. A única desculpa para fazermos uma coisa inútil é admirarmo-la
intensamente. Toda a arte é perfeitamente inútil.”
Professora da Universidade da Beira Interior
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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