A percepção da corrupção pelos famintos, miseráveis e pessoas que perderam a sua condição social causa indignação moral e a busca de uma saída social que possa ser politicamente viável. Artigo do professor Denis Rosenfield para a edição especial da revista Crusoé:
A corrupção
no Brasil tornou-se um problema institucional, isto é, diz respeito às
instituições, a seu modo de funcionamento e ao cumprimento ou não de sua
finalidade própria, a de estarem voltadas para o bem público. Estamos
diante da acepção de República, de bem coletivo, e não de seu
aparelhamento por grupos estamentais, corporativos, quando não
diretamente criminosos. Não importa que uns se digam de esquerda ou de
extrema direita, quando isso nada mais significa senão narrativas
ideológicas utilizadas para justificar o crime e/ou o aparelhamento das
instituições.
O
espetáculo dos últimos meses é, nesse sentido, aterrador. Todos os
condenados pela Lava Jato estão sendo “inocentados”, “absolvidos” ou
como se queira chamar a anulação de condenações pelas mais diferentes
razões, sempre em busca de uma justificativa formal, qualquer que seja. O
objetivo parece ser um só: a anulação da Lava Jato e da luta contra a
corrupção. Para que isso seja feito, basta a contratação de caras bancas
de advogados, que, por intermédio de incessantes recursos, conseguem,
ao fim, a “absolvição”de seus clientes. As provas terminam na cesta de
lixo. A Justiça tarda, mas sob a forma da mais severa das injustiças.
Réus confessos são soltos, seus processos são anulados, delatores são
“inocentados”.
Ministros
de tribunais superiores chegam a essas “conclusões” após vários anos,
frequentemente contra sentenças anteriores deles mesmos, em uma espécie
de revelação religiosa de profundas repercussões terrenas. Repercussões
morais, pois os tribunais superiores são tidos por inconstantes,
contraditórios, sem nenhuma adesão a princípios; repercussões
institucionais, pois mostram que o crime compensa; e repercussões
políticas, pois alteram profundamente o cenário eleitoral, com um ex-presidiário ocupando hoje uma posição central no tabuleiro partidário. A confusão é total e a insegurança jurídica é completa.
Estabeleceu-se
uma identidade fictícia, obediente a interesses partidários, entre a
Lava Jato e a luta contra a corrupção. Não houvesse o PT
perdido a memória, poderia se lembrar que liderou a luta contra a
corrupção, apregoando a ética na política. Enquanto tirou dela proveito,
guardou as aparências até ser alvejado pelo mensalão, pelo petrolão e julgado pela Lava Jato. Não houvesse o presidente Bolsonaro traído suas “ideias” e “promessas”, como o combate ao toma lá dá cá, à corrupção e ao “sistema político”, e sucumbido ao Centrão e às suas negociações, o país seria outro.
Petistas
e bolsonaristas, ao se insurgirem contra a Lava Jato, na verdade
sinalizaram o que fizeram: a renúncia à luta contra a corrupção. Agora,
procuram normalizar essa atitude que, a bem dizer, tem tudo de anormal.
Os seus advogados certamente dirão que a operação não seguiu os seus
devidos trâmites legais; seus parlamentares de distintos horizontes se
insurgem contra os seus supostos excessos, não sem antes apostarem em
candidaturas que lhes tragam tranquilidade em suas operações. Ou seja, a
Lava Jato não está
sendo negada por supostos ou eventuais excessos, mas para ser relegada a
uma posição secundária na luta contra a corrupção. Não faltará quem
diga que essa bandeira não faz hoje parte da pauta eleitoral. Não
aparece entre as prioridades pelo fato de a pandemia ter tido resultados
desastrosos e de a atual política econômica estar provocando fome,
baixa renda e subemprego, além de baixo crescimento. Contudo, essa sua
posição secundária é, ela também, fruto do ocultamento intencional do
qual foi objeto. Basta que atores políticos saibam enfrentar essa
questão, para que ela volte ao proscênio.
Note-se
que, do ponto de vista político, o escamoteamento dessa falta de
moralidade pública, de desvio de recursos públicos, foi deslocado para o
embate eleitoral, sendo o ex-juiz Sergio Moro
o seu alvo, precisamente por postular a Presidência da República.
Procura-se não falar da corrupção, mas em atacar o juiz que foi o seu
símbolo. É como se o problema da corrupção estivesse, assim, magicamente
resolvido. Tem-se, dessa maneira, o objetivo de neutralizar
politicamente qualquer veleidade moral, como se a ética não fosse
atualmente um problema político. Curioso nesse processo é que se atribui
a um juiz de primeira instância a responsabilidade completa de um
processo judicial que teve nele um pontapé inicial.
Na
verdade, ele se situa no início de toda uma apuração que envolveu
promotores, procuradores, outros juízes, desembargadores e ministros dos
tribunais superiores. O TRF-4, um dos mais sérios e ágeis tribunais do
país, reiterou e confirmou as sentenças das etapas iniciais. Aprofundou
mesmo algumas penas. O STJ
seguiu no mesmo diapasão, assim como o STF. Se houve posteriormente
mudanças nos tribunais superiores, com algumas decisões monocráticas,
tais atitudes não apenas puseram em questão o ex-juiz Moro, mas todo o
edifício da Justiça brasileira. É ela que sai desacreditada. E por mais
inacreditável que isso pareça: em nome da Justiça.
Evidentemente,
para os pobres e desfavorecidos, tal “Justiça” não vale. Eles não
possuem recursos para bancar ricos advogados durante anos. São muito
frequentemente presos por qualquer crime menor, não podendo nem
apresentar recursos de forma conveniente. Sucumbem nas primeiras
instâncias! O que dirão eles lendo, vendo e ouvindo as “absolvições” dos
ricos e privilegiados, esses aos quais a lei não se aplica? O crime
para eles compensa, enquanto para aqueles, não há recompensa nenhuma
senão a condenação e o cárcere. E não deixa de ser tampouco paradoxal
que o partido dito dos trabalhadores faça com afinco esse jogo contra os
trabalhadores.
Imaginem
o que pode bem sentir uma mãe ou pai de família, com seus filhos
passando fome aos seus olhos, não podendo ir à escola ou o fazendo muito
precariamente, sem vislumbrar qualquer futuro, vendo na televisão
bilhões serem desviados, parlamentares abocanhando milhões em emendas
parlamentares e um presidente dizendo que nada pode fazer, perdido em
moinhos de vento contra as vacinas, as urnas eletrônicas, e lutando pelo
armamento da população, que nem dinheiro tem para comprar coisa
nenhuma, muito menos revólveres e munições. Claro que o presidente não
tem o charme e a ironia de Dom Quixote, nem a sabedoria de Sancho Pança.
A
percepção da corrupção pelos famintos, miseráveis e pessoas que
perderam a sua condição social causa indignação moral e a busca de uma
saída social que possa ser politicamente viável. No entanto, muitas
vezes a urgência da fome, da doença e do abandono dos filhos é de tal
monta que os cantos de sereia do populismo encontram acolhida. Pelo
prato do dia, sem saberem, hipotecam o seu futuro. A luta contra a
corrupção permanece, porém, um problema precisamente por suas
implicações sociais e sanitárias. Até recentemente, a CPI da Covid,
com senadoras e senadores engajados nas averiguações, mostrou a
corrupção se infiltrando em decisões políticas graças à ação de
meliantes de fora e de dentro do aparelho estatal – uma das senadoras, Simone Tebet, devido a seu posicionamento, surgiu também candidata a presidente da República.
A
corrupção corrói a moralidade pública, fazendo com que a percepção dos
cidadãos os faça desacreditar dos políticos. Assim, soluções
autoritárias para os incautos e desfavorecidos pode terminar como um
caminho de efeitos nefastos. A corrupção produz o desvio dos recursos
públicos que poderiam ser utilizados em programas sociais e sanitários,
aliviando os mais necessitados. A corrupção destrói o tecido
constitucional, esgarçando os seus valores e produzindo a corrosão da
democracia. A corrupção e o seu sucesso pela não punição mostram que o
crime, infelizmente, compensa para os ricos e privilegiados.
Pode, dessa maneira, uma sociedade encontrar o seu futuro? Pode ela enfrentar os problemas do seu presente?
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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