quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

O velho "normal"

 


BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

O jantar que reuniu Lula e Geraldo Alckmin, organizado pela facção jurídica do PT, foi uma celebração da volta das práticas que pareciam ter sido erradicadas pela Lava Jato. Um mau augúrio para 2022. Fabio Leite e Helena Mader para a revista Crusoé:


Inúmeras legendas já foram feitas para tentar descrever o abraço entre Lula e Geraldo Alckmin fotografado no último domingo, 19, quando o petista e o ex-tucano protagonizaram o primeiro encontro público desde o início da articulação em torno da chapa para a eleição presidencial do ano que vem. Para reproduzir fielmente o espírito da foto que selou a união de dois adversários históricos, é preciso saber quem estava ao redor dela e o que celebravam no concorrido salão de uma churrascaria de grife em São Paulo. De cara, a julgar pelos convivas do já notório jantar na capital paulista, é possível afirmar que a cena guarda muito mais relação com os triunfos nos tribunais neste ano do que com a vitória que se almeja nas urnas em 2022. Para além do cenário que emoldura a retrato de Lula e Alckmin, a picanha e o vinho degustados ali tinham um tempero adicional: incluía os festejos pela aparente normalização de práticas já condenadas pela população num passado bem recente, como as travas ao combate à corrupção, a volta da impunidade, a retaliação aos integrantes da força-tarefa da Lava Jato e o sinal verde para as alianças heterodoxas de objetivos, não raro, pouco republicanos.

O evento foi organizado pelo grupo Prerrogativas, espécie de facção jurídica petista, criado há seis anos por advogados para tentar desqualificar a Lava Jato. Enquanto os assentos para o jantar foram vendidos por 500 reais a empresários, a extensa lista de políticos convidados “de graça” pareceu ter sido extraída da relação de codinomes do departamento de propinas da Odebrecht. Perto do “Amigo” (Lula) e do “M&M” (Alckmin), que dividiram a mesa com o “Paris” (Márcio França), um dos articuladores dessa chapa presidencial, sentaram-se a “Amante” (Gleisi Hoffmann), a “Barbie” (Marta Suplicy) e o “Aracajú” (Aloizio Mercadante). O “Justiça” (Renan Calheiros) circulou com desenvoltura pelo restaurante e distribuiu declarações aos jornalistas presentes, ao passo que o “Forte” (Paulinho da Força), que já abriu as portas do seu partido para o “M&M” ser vice do “Amigo”, ficou na mesa reservada aos chefes das legendas. Nela, sentou ainda Baleia Rossi, presidente do MDB, que, apesar de não ter ganhado um apelido, também é investigado por suposto recebimento de caixa dois da empreiteira baiana e da J&F, a holding dos irmãos Joesley e Wesley Batista. Outros sinais de que a festança celebrava mais a destruição da Lava Jato do que qualquer conchavo eleitoral foram as presenças ilustres de “Botafogo” (Rodrigo Maia) e “Kimono” (Arthur Virgílio), respectivamente, secretário e correligionário do governador tucano João Doria, rival de Lula na corrida ao Planalto em 2022.

Sem o menor pudor, o coordenador do Prerrogativas e anfitrião do jantar, o advogado Marco Aurélio de Carvalho, ele próprio delatado pela J&F, por ter recebido 1,4 milhão de reais sem prestar nenhum serviço, escancarou aos presentes que as únicas “personae non gratae” no evento seriam João Doria e Sergio Moro, maior algoz de Lula e presidenciável pelo Podemos, porque “apoiaram Bolsonaro em 2018”. Mas coube ao advogado Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, um dos inspiradores do Prerrogativas e defensor do ex-presidente Michel Temer, cunhar a frase que seria a cereja do bolo do convescote da impunidade. “O crime já aconteceu, o que que adianta punir? Que se puna, mas que não se ache que a punição irá combater a corrupção, presidente”, disse Mariz a Lula, como mostrou O Antagonista nesta semana.


Lula era a estrela do evento, mas a presença de Alckmin na churrascaria, obviamente, atraiu os holofotes — e esse era o objetivo político do convescote. Bajulado por petistas que até pouco tempo atrás queriam fustigá-lo com uma CPI para apurar desvios em obras nos governos do PSDB — investigação engavetada neste mês sob o silêncio sepulcral do PT na Assembleia Legislativa –, o ex-governador paulista já admitiu a aliados que o que o aproximou do partido de Lula foi o fato de também ter se tornado “vítima” dos “excessos” da Lava Jato. Em julho de 2020, o ex-tucano virou réu e teve seus bens bloqueados pela Justiça Eleitoral em uma ação de corrupção passiva, lavagem de dinheiro e caixa dois movida pelo Ministério Público, por suposto recebimento de 11,3 milhões de reais da Odebrecht, nas campanhas de 2010 e 2014. Para Alckmin, que ainda tenta obter as mesmas benesses de Lula nos tribunais, o jantar de domingo trouxe uma “esperança”, palavra que ele passou a repetir nesse novo momento político. “Não importa se no passado fomos adversários, se trocamos algumas botinadas, se no calor da hora dissemos o que não deveríamos ter dito. O tamanho do desafio que temos pela frente faz de nós aliados de primeira hora”, discursou Lula diante de Alckmin, na noite memorável.

Se Lula não mudou, quem parece ter mudado foi Alckmin. Em 2018, o então tucano acusou Lula de querer ser eleito para “voltar à cena do crime”. Quatro anos depois, Alckmin parece querer não só passar pano sobre a cena do crime como fazer parte dela – a julgar pelo que ele próprio falou lá atrás. Guinadas ideológicas e elasticidades morais à parte, é fato que alianças heterodoxas não são uma novidade da política nacional. As composições de José Sarney, então presidente da Arena, com a Frente Liberal, a união entre o PSDB e PFL para eleger o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, são casos emblemáticos da história recente do país.

Ocorre que as parcerias celebradas por Lula, para variar, costumam embalar propósitos muitas vezes inconfessáveis. Em 2002, ao convidar José Alencar para sua chapa, o petista pretendia se tornar mais palatável ao empresariado, que à exceção dos donos da Odebrecht, com quem Lula àquela altura já cultivava uma relação simbiótica, sempre desconfiou de suas reais intenções. Soube-se depois, e não muito tempo depois, que o apoio de Alencar e do seu então partido, o PL, ao governo petista seria a gênese do mensalão – o PL, então presidido pelo ínclito, reto e vertical Valdemar Costa Neto, hoje aliado de primeira hora do presidente Bolsonaro, negociou um milionário financiamento de campanha para aderir à chapa de Lula.


Passados quase 20 anos, ninguém sabe de que maneira o ‘chuchu’ irá agregar à aliança petista, para além de tentar fingir para parte do eleitorado refratário ao PT que a união terá o condão de “moderar” o cabeça de chapa, mentor intelectual do ainda presente na política nacional “nós contra eles”.

Em termos de voto, o desempenho do ex-tucano nas urnas nas últimas eleições dá a medida do seu prestígio entre os eleitores. Com 4,7%, em 2018, ele amargou o pior resultado da história do PSDB. Fora do tucanato e ainda sem partido, Alckmin nem sequer tem um grupo político. Ou seja, o que ele representará num eventual governo do PT é um mistério.

O mesmo não se pode dizer de José Dirceu, que já foi preso e condenado no mensalão e no petrolão, e deixou a cadeia junto com Lula, há dois anos. Dirceu tem rodado o país na tentativa de robustecer o palanque lulista. Se Lula voltar ao poder, claro, o ex-capitão do time voltará a dar as cartas em Brasília. Em encontro com o presidente do PV, José Luiz Penna, há duas semanas, em Brasília, Dirceu alinhou a adesão da sigla que já abrigou Marina Silva à coligação do PT. “Ele (Dirceu) faz alguma prospecção importante para os caminhos do Lula e me pareceu estar afinado (com o ex-presidente) tanto quanto a Gleisi”, relatou Penna a Crusoé. Em junho, Dirceu já havia discutido o cenário eleitoral com Gilberto Kassab, em um jantar na casa do advogado Roberto Podval, na capital paulista. Alguns meses depois, foi a vez de o próprio Lula sentar-se com o dono do PSD, a quem ainda tenta atrair para a sua “frente ampla”.

Por ora, o PT ainda esconde José Dirceu dos holofotes, mais ou menos como tem feito com Dilma Rousseff, que não foi convidada para o jantar de domingo e ficou fula da vida. Petistas acreditam, no entanto, que é questão de tempo para Lula e seu entourage naturalizarem a atuação do ex-ministro, assim como Jair Bolsonaro perdeu completamente o pudor e se associou a Valdemar Costa Neto, igualmente condenado no mensalão, para tentar a reeleição.


O clima do acordão em favor da impunidade há tempos contagiou Brasília e tem provocado um efeito deletério sobre os instrumentos capazes de impor algum limite ou temor aos desmandos e desvios praticados pelas autoridades. A manobra para desmontar o trabalho desenvolvido pela comissão da PEC da Segunda Instância exemplifica – e explica – esse fenômeno. Durante dois anos, parlamentares que defendem a prisão após a condenação em segunda instância costuraram acordos para viabilizar sua aprovação. No último dia 8, quando o colegiado se encaminhava para votar o relatório do deputado Fábio Trad, do PSD, partidos do Centrão mudaram 17 integrantes da comissão e indicaram nomes declaradamente contrários à PEC. Na iminência de ver o relatório rejeitado, Trad retirou o texto de tramitação. Com isso, o assunto pode ser enterrado de vez. Antes da pandemia, a estratégia dos deputados contrários à PEC era evitar a votação a qualquer custo. À época, se posicionar contra a prisão em segunda instância era visto como suicídio político e, portanto, a saída era manobrar para evitar o debate – assim como a Câmara faz há quatro anos com o fim do foro privilegiado. Agora, o jogo virou: os parlamentares perderam o pudor de se posicionar publicamente contra a proposta.

O menosprezo por alguns valores basilares e pelo que pensa uma expressiva parcela do eleitorado lembra uma passagem que ficou registrada na história da política brasileira por uma célebre declaração do ex-deputado Sérgio Moraes, do PTB gaúcho. Em 2009, ao ser questionado pelo arquivamento do pedido de cassação do deputado mineiro Edmar Moreira, por ter ocultado um castelo de 20 milhões de reais do seu patrimônio, Moraes escandalizou o país ao dizer, em tom de indolência: “Estou me lixando para a opinião pública”. Somente após as manifestações de 2013, que sacudiu a classe política, é que os parlamentares passaram a temer o ronco das ruas. Com os podres tirados debaixo do tapete pela Lava Jato, os poderes se viram obrigados a aprovarem novas legislações, como a lei anticorrupção e até o fim do foro privilegiado, um marco da moralização da gestão pública. De lá para cá, porém, o Brasil enfrentou uma escalada de retrocessos desencadeados pela reação do establishment – para o deleite dos políticos encrencados e advogados de criminosos, como os que se reuniram domingo numa churrascaria de São Paulo, entusiastas da volta do “velho normal”.
 
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