Enquanto não acontecer a reforma imprescindível do modelo político, precisamos festejar cada quilômetro de avanço na estrada da prosperidade. Artigo do economista Ubiratan Jorge Iorio para a Oeste:
“Em países diferentes as instituições serão diferentes,
mesmo fundadas em leis iguais.
Talvez
que, se as Constituições tivessem tido redações dessemelhantes, os
resultados se assemelhassem. Importa, pois, apurar a diferença, isto é, a
razão pela qual os países da América Ibérica diferem, quanto à
política, dos Estados Unidos.”
João Camilo de Oliveira Torres
O
leitor já deve ter deparado com críticas (geralmente formuladas por
quem gosta de se apresentar como liberal ou conservador) à lentidão das
reformas estruturais prometidas pelo governo federal e amplamente
endossadas pelos eleitores em 2018. Certos avaliadores chegam a colocar
em dúvida as reais intenções do presidente Jair Bolsonaro de promover as
mudanças necessárias ao encolhimento do Estado e de sua ingerência nas
atividades econômicas. Até acusam o seu “Posto Ipiranga”, o ministro
Paulo Guedes, de renegar o conhecido passado de liberal convicto. Ele,
que foi aluno de Milton Friedman e de uma plêiade respeitável de
economistas que ensinavam na Universidade de Chicago nos anos 1970.
A
verdade é que a maioria desses muxoxos embute um forte quê de juízo
precipitado. Para recorrermos a uma analogia musical, é inegável que
algumas das reformas liberalizantes — a administrativa, a tributária e
as privatizações — estão com um andamento largo (muito devagar) ou, com
alguma condescendência, andante (em passo de caminhada). É óbvio que o
ideal seria que fosse acelerado até o presto (muito rápido), mas,
infelizmente, quando se trata de mexer no vespeiro do Estado, querer não
significa poder.
Há
vários motivos para os ataques desferidos contra a equipe econômica
pelo grupo de fiscais das intenções alheias da “turma da terceira via”.
Esses motivos variam da malandragem dos interesses políticos ao
desconhecimento do processo histórico do nosso país, passam por um ódio
gratuito ao presidente, pela rejeição aos valores morais tradicionais,
por uma possível inveja, passam também por um casticismo doutrinário
ingênuo, compreensível em adolescentes puros e sonhadores, mas não em
adultos maduros e ponderadores.
Ora,
uma sociedade não se transforma simplesmente estalando-se os dedos,
assim como não é possível um bebê passar à idade adulta sem atravessar a
infância e a adolescência. Como a borboleta só consegue sair do casulo
depois de ter sido larva e pupa, a absorção de valores, princípios e
instituições verdadeiramente liberais em uma sociedade como a brasileira
exige tempo e paciência. Com um prontuário de dependência do Estado
ostensiva e firma reconhecida em cartório, requer uma metamorfose, com
mudanças lentas, espontâneas e orgânicas em sua cultura e estrutura.
O
liberalismo não pode ser imposto, ele precisa ser pacientemente
explicado, entendido e absorvido paulatinamente, até que seja
transformado em consenso de maneira natural. Não basta, como parecem
imaginar certos semiliberais (cujo histórico de leituras parece
limitar-se a meia dúzia de orelhas de livros, mas que são tidos como
“influenciadores” nas redes sociais), que o ministro ou o presidente
emitam uma ordem do tipo “privatize-se a empresa X” ou que decretem um
comando tal como “corte-se já em tantos por cento as despesas com
funcionários públicos” e voilà! — que esses milagres aconteçam
exatamente como nos espetáculos de mágica, e a estatal que entrou na
cartola saia saltitante, serelepe, com as orelhas em pé, já privatizada,
eficiente e eficaz como um gerente japonês, e as despesas com pessoal
da União despenquem como jaca madura.
Sociedade formada de baixo para cima
A
verdade, que infelizmente vem sendo ignorada por quase todos os
críticos (inclusive por alguns bem-intencionados), é que o liberalismo
só floresce e se consolida na sociedade e na economia mediante
processos, e não por decretos. De sucessões de tentativas e erros ao
longo do tempo, e não de comandos imediatos, de transformações
culturais, morais, sociológicas, legais, antropológicas e econômicas
profundas, de verdadeiras transmutações, e não de “banhos de loja”
promovidos por algum político ou economista iluminado. O liberalismo,
senhores, só cria raízes se surgir como uma ordem espontânea, um
processo evolutivo não planejado, e não como uma decisão de engenharia
social. Para ser estável, exige sempre um longo caminho até que a
maioria absorva a certeza de que a via liberal é melhor do que todas as
outras.
As
grandes dificuldades que o governo vem enfrentando para a aceitação do
seu programa estão profundamente incrustadas em nossa história e
cultura. Estamos ainda nos primeiros quilômetros do caminho para a
prosperidade, basta comparar a nossa história com a dos Estados Unidos.
Lá, o liberalismo teve oportunidade de florescer desde que aqueles 104
homens, em abril de 1607, desembarcaram de três navios e fundaram o
primeiro assentamento britânico, o Forte de Jamestown, no atual Estado
da Virgínia. E, principalmente, desde que os sobreviventes da famosa
viagem do Mayflower, peregrinos puritanos que fugiam de perseguições dos
anglicanos, estabeleceram, em 1620, a primeira colônia em Plymouth, no
atual Estado de Massachusetts.
Desde
o início de sua formação, o que seria a futura sociedade
norte-americana sempre se sustentou firmemente nos princípios liberais
característicos da cultura anglo-saxônica, como o common law e o
self-government. Isso significa que a sociedade se formou da base para o
topo, de baixo para cima, ou seja, a sociedade precedeu a formação do
Estado, o que explica sua extraordinária capacidade de empreender
projetos políticos, econômicos e sociais a partir de si mesma. Dispensou
a necessidade do governo para executar essas tarefas e guiar suas
vidas.
O
autogoverno é parte do processo histórico que desaguou na revolução
federalista americana, que consagrou a fundação definitiva do país. A
formação da América foi um processo de emigração voluntária de famílias
do Reino Unido que, ao chegarem ao Novo Mundo, se organizaram em
comunidades com interesses comuns. Portanto, os americanos não possuem
um passado feudal, sempre foram livres da herança de estratificação
social e concentração do poder nas mãos dos senhores dos feudos. Essas
características fizeram com que o consenso fosse gerado naturalmente
pela própria sociedade e não uma prerrogativa das instituições
políticas.
O chamego quase obsceno do Estado
A
tripartição de Poderes nos Estados Unidos é historicamente abalizada.
Existe desde a fundação do país e por isso é o modelo de instituição
política que melhor se adéqua à alma norte-americana. Parte substancial
do poder sempre esteve concentrada na própria base da sociedade, que,
por conseguinte, detém as condições políticas necessárias e suficientes
para equilibrar e controlar os três Poderes. Como observou Tocqueville, é
um modelo político em que a força que legitima o poder e controla o seu
equilíbrio não se situa “dentro” dos Poderes, mas na própria base
social.
A
cultura norte-americana, ao prover a sociedade de condições de
controlar o poder, torna a democracia constitucional um fenômeno
natural, assim como o ato de respirar, não exige planejamento,
simplesmente acontece incessantemente. Infelizmente, a febre socialista
que contaminou o Partido Democrata nos últimos anos vem ameaçando essa
virtude. Mas esse é tema para outro artigo.
Nos
Estados Unidos, a afirmação de que “o poder emana do povo” não soa como
um mero princípio jurídico ou uma frase bonita inserida na
Constituição. Retrata a realidade histórica de que o povo é
politicamente forte em relação ao poder estatal, prerrogativa, aliás,
que o próprio povo criou e controla.
A
formação da sociedade brasileira difere profundamente. Enquanto nos
Estados Unidos a sociedade precedeu o Estado, aqui e nos demais países
da América Ibérica foi o Estado que chegou primeiro, só depois — e
criada por ele — é que surgiu a sociedade, ou seja, nossa formação
social foi de cima para baixo, o que acarretou várias consequências, e
entre elas podemos sem dúvida destacar o chamego quase obsceno, o apego
doentio ao Estado como solucionador de todos os problemas, tido como uma
entidade superior e sempre preocupada com o bem comum. Tal atitude é
natural, considerando que os nossos pioneiros eram representantes dos
Estados português e espanhol, enquanto os desbravadores do norte eram
indivíduos buscando uma liberdade que não tinham na Europa. Lá, o Estado
era visto como o algoz, o inspetor chato do colégio, enquanto aqui era —
e ainda é — considerado o provedor beneficente, o pai que sempre leva o
filho à escola pela mão.
Esse
DNA da nossa sociedade explica os dissensos fortes e crônicos em sua
base, que não possui o poder político imprescindível para aglutinar
forças capazes de mobilizar um projeto comum. A soma dessa paixão
desordenada, dessa dependência infantil do Papai Estado com uma herança
cultural milenar fortemente patrimonialista, de origem ibérica, explica
boa parte das enormes dificuldades que o governo Bolsonaro (ou qualquer
outro que se disponha a tal) precisa enfrentar para privatizar,
desburocratizar, destributar, desregulamentar, desonerar, enfim, para
reformar. Como dizia brincando um saudoso professor que tive: “O Estado é
perigoso e anda armado…”
A
instauração da República só piorou as coisas. Sem nenhum respaldo
popular, os golpistas transplantaram para cá instituições consagradas
por usos e costumes norte-americanos, a saber: (a) um presidencialismo
forte, em que a mesma pessoa acumula as funções de chefia de Estado e de
governo; (b) a extinção do sistema institucional do Império, que
contemplava um quarto Poder (o Moderador), que atribuía ao Imperador as
funções de chefia de Estado e árbitro dos demais Poderes e que funcionou
satisfatoriamente de 1822 a 1889; e (c) a tripartição clássica de
Poderes, teoricamente independentes e harmônicos. Como atestam as
inúmeras crises políticas e as seis Constituições promulgadas nos
últimos 132 anos, a República foi uma tentativa de fazer um cavalo
deixar de relinchar e passar a cacarejar.
Ao
colocar Estado e governo em um mesmo saco, a República mandou às favas a
unidade e a integridade política necessárias para a formação do
consenso. O resultado é que cada um dos Poderes se vê como dono do
cavalo, embora ele não pertença a nenhum deles. É simplesmente absurda e
inaceitável para qualquer liberal sincero a concentração de poder dos
presidentes das duas Casas do Congresso e dos ministros do STF, seja em
termos absolutos, seja comparativamente ao poder que tem o Executivo. É
uma anomalia no mínimo estranha em um regime presidencialista.
Por
tudo isso, quando criticamos, por exemplo, a demora em privatizar os
Correios, a Eletrobras ou qualquer outra empresa, ou observamos, quando
da reforma da Previdência em 2019, a forte rejeição que impediu a
mudança do regime de repartição para o de capitalização, ou vemos as
dificuldades por que estão passando todas as reformas importantes, temos
de considerar as características seculares de dependência patológica do
Estado e pensar seriamente em reformular o modelo
político-institucional vigente. Não é à toa que há momentos em que temos
a sensação de que Legislativo e Judiciário, além de setores do
Executivo distantes do presidente, são contra o governo. Reação que se
amplifica pelo fato deste, pela primeira vez em muitos anos, contemplar
um projeto liberal e conservador.
A
lição: precisamos ser pragmáticos, e enquanto não acontecer a reforma
imprescindível do modelo político, festejar cada quilômetro de avanço na
estrada da prosperidade, e, cá entre nós, para quem andou na marcha a
ré durante tanto tempo, até que percorremos um trecho razoável em menos
de três anos. Os diversos “marcos legais” aprovados, a valorização da
consolidação fiscal (apesar da pandemia), a autonomia do Banco Central,
algumas privatizações realizadas e outras em processo, a lei de
liberdade econômica, a revolução na infraestrutura com base em capitais
privados, a mudança na composição dos investimentos, com menor
participação do governo (o que aumenta a produtividade). Estamos andando
para a frente.
E
isso não é melhor do que retroceder, recaindo na social-democracia que
só nos estagnou? Ou do que abandonar a estrada virtuosa e optar pelo
caminho da servidão, aquele da república sindical rupestre e corrupta,
que sugou o país durante 13 anos?
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário