Saldanha Marinho |
Texto de Fernão Lara Mesquita, publicado no blog Vespeiro:
A
história das nossas ferrovias é uma síntese perfeita da saga do Brasil
Real em sua luta em “busca da felicidade” idêntica à de todo o resto da
humanidade mandada que emergiu da longa noite feudal para a alvorada
democrática, e o Brasil Oficial mandante para impedi-lo de alcançá-la à
custa da perda de seus privilégios ancestrais.
São
Paulo só é o que é hoje porque, por uma dessas conjunções de acasos que
só a vida real é capaz de produzir, foi uma exceção no padrão nacional
de bloqueio político à ferroviarização.
A
República nunca “viveu” entre nós. Com exceção de Prudente de Moraes — e
a bem da verdade também de Pedro II que, se não podia ser chamado
“republicano”, por acidente de nascimento, estava mais sintonizado que
quase todos os brasileiros de seu tempo na modernidade por traz desse
conceito — o Brasil jamais teve outro presidente que tivesse noção, para
além do “lero”, do que realmente significa a expressão “república
democrática”.
Ruy
Barbosa foi outro dos que justificam esse “quase”. Primeiro ministro da
Fazenda depois do 15 de novembro, mais em função do prestígio que lhe
sobrava e faltava a Deodoro que por afinidades eletivas com ele, Ruy
teve a oportunidade de baixar, a 17 de janeiro de 1890, os quatro
decretos que constituíram a “Lei Áurea” da iniciativa privada no Brasil,
antes de ser defenestrado em 1891 como o estranho no ninho que era
entre os positivistas que deram o golpe em nome da república.
“As
companhias ou sociedades anônimas, seja civil ou comercial o seu
objetivo, podem estabelecer-se sem autorização do governo” rezava a peça
que transformava num direito do cidadão investir sua poupança num
empreendimento privado reconhecido pela lei, expediente até então
proibido.
É
uma fórmula que guarda não poucas semelhanças com o texto do novo marco
legal das ferrovias aprovado terça-feira passada na Câmara dos
Deputados (PLS 261/18 e MP 1065/21 de Bolsonaro). Ela extingue o regime
de “concessão do governo” como o único permitido e dispensa licitações
para que uma empresa privada construa e opere ferrovias. Agora basta uma
autorização para um projeto privado tornar-se realidade. Ou seja, não é
mais a política(gem) que estabelece qual a ferrovia necessária ou
possível para o Brasil, são os brasileiros que precisam usá-las ou
faze-las render que decidem isso, o que faz toda a diferença do mundo.
Desde
Ruy têm havido, porém, mais esforços para fazer regredir que para fazer
avançar o desenho das instituições do Brasil que ele vislumbrou. O
PSOL, na melhor tradição dos seus precursores, tentou enfiar na votação
de terça-feira um destaque, felizmente rejeitado por 243 a 88, proibindo
a construção de ferrovias por autorização em vez de concessão. Talvez
ainda consiga derrotar o conjunto dos brasileiros e seus representantes
legitimamente eleitos com uma decisão monocrática de algum dos 5as
colunas enfiados no STF a pedido de alguma ONG de uma noruega qualquer,
pois no Brasil, como sabemos, nem mesmo o passado é estável. Mas por
enquanto estamos diante de uma nova janela de oportunidade que não se
abre ha quase 200 anos no que tange a transporte ferroviário.
O
primeiro trem circulou pela Terra em 27 de setembro de 1825 entre
Stockton e Darlington (51 km), na Inglaterra. Os Estados Unidos rodaram
sobre sua primeira linha já em 1827, entre Baltimore e Ohio. De ululante
que era o impacto dessa revolução, tão cedo quanto 1828 dá-se a
primeira tentativa da iniciativa privada brasileira de importar a
novidade. Mas ela é sabotada até a morte pelo imperador Pedro I.
Era o começo de uma longa sucessão de batalhas perdidas.
Com
a expansão do café pela Noroeste de São Paulo travada pela
inviabilidade de custo de transporte até o porto do Rio de Janeiro, um
grupo de empreendedores paulistas cotiza-se, em 1839, e encomenda a
ninguém menos que Robert Stephenson, engenheiro inglês filho de George
Stephenson, o inventor da locomotiva em pessoa, um projeto de ferrovia
ligando o planalto paulista ao porto de Santos.
Mas a iniciativa é julgada “prematura” e, novamente, proibida pelo imperador.
De
negativa em negativa um Brasil parado à espera nas cercanias do porto
do Rio de Janeiro só teria seu marco inicial nas ferrovias com o projeto
de Mauá, já sob Pedro II, quando o Império evoluiu do peremptório “não”
para um “talvez” em matéria de ferrovias, para 14 km de trilhos entre o
fundo da Baia da Guanabara e Raiz da Serra, embaixo de Petrópolis, um
projeto de valor apenas simbólico de vitória contra o Estado. Ele se
envolveu em nove projetos ferroviários diferentes com sucesso sempre
relativo. Com mais algumas iniciativas igualmente modestas no Rio e em
Recife, Mauá, de cuja fama e riqueza sua majestade “tinha ciúmes”, só
vai conseguir retomar o projeto da Santos-Jundiaí e trazer os trilhos
dessa cidade no interior paulista até o pé da serra em 1859, altura em
que os Estados Unidos já tinham assentado quase 100 mil km de trilhos.
Mas
brasileiro não desiste nunca. Sem pejo de pagar pelo melhor, como todo
empreendedor do seu calibre, Mauá contrata em Londres Daniel Makinson
Fox, construtor de ferrovias nas encostas dos Pireneus, para executar a
transposição dos 800 acidentados metros de desnível da Serra do Mar,
projeto então muito além da capacidade da engenharia brasileira. Mas o
problema técnico era, como sempre, o de menos. Somente em 1867 estaria
vencida a gincana político/corrupto/burocrática e pronta a ferrovia que
até hoje é a que vence a Serra do Mar.
Nesse
meio tempo um Pedro II mais maduro nomeia Joaquim Saldanha Marinho,
pernambucano que já governara Minas Gerais entre 1865 e 1867 presidente
da Província de São Paulo (em 1867 e 1868). Advogado, jornalista,
sociólogo, maçon e político, esse grande brasileiro sobre cuja biografia
faltam estudos mais aprofundados, aproveitando o momento conturbado do
esgotamento financeiro do império pela Guerra do Paraguai (1864 a 1870),
concentra-se numa campanha pela extensão da The São Paulo Railway
Company Ltd., que seus proprietários ingleses, sem segurança jurídica,
recusavam-se a levar além de Jundiaí, para a criação, em moldes
estritamente capitalistas como nunca antes tinham sido permitidos no
Brasil, do que viria a se tornar a Companhia Paulista de Estradas de
Ferro.
Saldanha
promovia, nos teatros de São Paulo e Campinas, um centro tradicional de
tropeiros que conheciam o Brasil que ainda não tinha estradas, noitadas
de apresentação do projeto e venda de ações da futura ferrovia que
integraria a Noroeste Paulista à economia brasileira. E ela avança: em
1875 até Rio Claro, 76 até Descalvado, mais umas tantas batalhas
burocráticas e vai a Ribeirão…
Os
efeitos são explosivos, como se poderá constatar nos livros
revolucionários de Jorge Caldeira que, rompendo a patrulha pseudo
“marxista” que dominou a historiografia brasileira ao longo de todo o
século 20, contam com números, personagens e pormenores fascinantes “Uma História do Brasil com Empreendedores”, a história de “Julio Mesquita e seu Tempo” que é também uma história da economia de São Paulo em seu melhor momento, e a “História da Riqueza no Brasil”, que sintetiza e extende suas obras anteriores.
Esses
efeitos perduraram por todo o século 20, moldaram e consolidaram a
vocação empreendedora de São Paulo. Assim como a ferroviarização sem
peias nem limites, possível num ambiente genuinamente democrático a
serviço dos interesses da maioria, fizeram dos Estados Unidos o que são
hoje — em 1890 já tinham 129.774 km de ferrovias; hoje chegaram a
226.600 — São Paulo decolou para um destino melhor que o do resto do
Brasil.
Conforme
avançava a sucessão de falcatruas e golpes da era republicana e
aumentava o inchaço do monstro corporativo-corrupto dos “donos do
Estado” brasileiro o país foi, de enguiço em enguiço, jogando fora
projetos como a ligação da Mantiqueira com o porto de S. Sebastião ainda
no século 19 e inúmeros outros no 20, até cair na estatização do que a
iniciativa privada tinha feito de ferrovias em 1946 e daí em diante, de
brejo em brejo, nos exíguos 29.755 km de trilhos que nos restam hoje,
boa parte dos quais desativados, enquanto a China constrói 20 mil km de
trens ultra-rápidos a cada quatro anos.
Sobre
a falta que isso fez e faz, estão aí os 14 projetos envolvendo 8 mil km
já contratados diante do mero anúncio da presente liberação. A ver até
onde conseguiremos chegar neste país em que, se fosse vivo, Ruy Barbosa
muito provavelmente estaria preso por “anti-republicano” pela polícia
política de Alexandre de Moraes — que prova mais conclusiva do que ter
Pedro II dito dele, no exílio, que “Nas trevas que caíram sobre o
Brasil, a única luz que alumia, no fundo da nave, é o talento de Ruy
Barbosa“? — se os pessóis e esseteefes deixarem.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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