quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

Nas ferrovias, a tragédia e a esperança do Brasil.

 


Saldanha Marinho

Texto de Fernão Lara Mesquita, publicado no blog Vespeiro:


A história das nossas ferrovias é uma síntese perfeita da saga do Brasil Real em sua luta em “busca da felicidade” idêntica à de todo o resto da humanidade mandada que emergiu da longa noite feudal para a alvorada democrática, e o Brasil Oficial mandante para impedi-lo de alcançá-la à custa da perda de seus privilégios ancestrais.

São Paulo só é o que é hoje porque, por uma dessas conjunções de acasos que só a vida real é capaz de produzir, foi uma exceção no padrão nacional de bloqueio político à ferroviarização.

A República nunca “viveu” entre nós. Com exceção de Prudente de Moraes — e a bem da verdade também de Pedro II que, se não podia ser chamado “republicano”, por acidente de nascimento, estava mais sintonizado que quase todos os brasileiros de seu tempo na modernidade por traz desse conceito — o Brasil jamais teve outro presidente que tivesse noção, para além do “lero”, do que realmente significa a expressão “república democrática”.


Ruy Barbosa foi outro dos que justificam esse “quase”. Primeiro ministro da Fazenda depois do 15 de novembro, mais em função do prestígio que lhe sobrava e faltava a Deodoro que por afinidades eletivas com ele, Ruy teve a oportunidade de baixar, a 17 de janeiro de 1890, os quatro decretos que constituíram a “Lei Áurea” da iniciativa privada no Brasil, antes de ser defenestrado em 1891 como o estranho no ninho que era entre os positivistas que deram o golpe em nome da república.

“As companhias ou sociedades anônimas, seja civil ou comercial o seu objetivo, podem estabelecer-se sem autorização do governo” rezava a peça que transformava num direito do cidadão investir sua poupança num empreendimento privado reconhecido pela lei, expediente até então proibido.

É uma fórmula que guarda não poucas semelhanças com o texto do novo marco legal das ferrovias aprovado terça-feira passada na Câmara dos Deputados (PLS 261/18 e MP 1065/21 de Bolsonaro). Ela extingue o regime de “concessão do governo” como o único permitido e dispensa licitações para que uma empresa privada construa e opere ferrovias. Agora basta uma autorização para um projeto privado tornar-se realidade. Ou seja, não é mais a política(gem) que estabelece qual a ferrovia necessária ou possível para o Brasil, são os brasileiros que precisam usá-las ou faze-las render que decidem isso, o que faz toda a diferença do mundo.

Desde Ruy têm havido, porém, mais esforços para fazer regredir que para fazer avançar o desenho das instituições do Brasil que ele vislumbrou. O PSOL, na melhor tradição dos seus precursores, tentou enfiar na votação de terça-feira um destaque, felizmente rejeitado por 243 a 88, proibindo a construção de ferrovias por autorização em vez de concessão. Talvez ainda consiga derrotar o conjunto dos brasileiros e seus representantes legitimamente eleitos com uma decisão monocrática de algum dos 5as colunas enfiados no STF a pedido de alguma ONG de uma noruega qualquer, pois no Brasil, como sabemos, nem mesmo o passado é estável. Mas por enquanto estamos diante de uma nova janela de oportunidade que não se abre ha quase 200 anos no que tange a transporte ferroviário.

O primeiro trem circulou pela Terra em 27 de setembro de 1825 entre Stockton e Darlington (51 km), na Inglaterra. Os Estados Unidos rodaram sobre sua primeira linha já em 1827, entre Baltimore e Ohio. De ululante que era o impacto dessa revolução, tão cedo quanto 1828 dá-se a primeira tentativa da iniciativa privada brasileira de importar a novidade. Mas ela é sabotada até a morte pelo imperador Pedro I.

Era o começo de uma longa sucessão de batalhas perdidas.


Com a expansão do café pela Noroeste de São Paulo travada pela inviabilidade de custo de transporte até o porto do Rio de Janeiro, um grupo de empreendedores paulistas cotiza-se, em 1839, e encomenda a ninguém menos que Robert Stephenson, engenheiro inglês filho de George Stephenson, o inventor da locomotiva em pessoa, um projeto de ferrovia ligando o planalto paulista ao porto de Santos.

Mas a iniciativa é julgada “prematura” e, novamente, proibida pelo imperador.

De negativa em negativa um Brasil parado à espera nas cercanias do porto do Rio de Janeiro só teria seu marco inicial nas ferrovias com o projeto de Mauá, já sob Pedro II, quando o Império evoluiu do peremptório “não” para um “talvez” em matéria de ferrovias, para 14 km de trilhos entre o fundo da Baia da Guanabara e Raiz da Serra, embaixo de Petrópolis, um projeto de valor apenas simbólico de vitória contra o Estado. Ele se envolveu em nove projetos ferroviários diferentes com sucesso sempre relativo. Com mais algumas iniciativas igualmente modestas no Rio e em Recife, Mauá, de cuja fama e riqueza sua majestade “tinha ciúmes”, só vai conseguir retomar o projeto da Santos-Jundiaí e trazer os trilhos dessa cidade no interior paulista até o pé da serra em 1859, altura em que os Estados Unidos já tinham assentado quase 100 mil km de trilhos.


Mas brasileiro não desiste nunca. Sem pejo de pagar pelo melhor, como todo empreendedor do seu calibre, Mauá contrata em Londres Daniel Makinson Fox, construtor de ferrovias nas encostas dos Pireneus, para executar a transposição dos 800 acidentados metros de desnível da Serra do Mar, projeto então muito além da capacidade da engenharia brasileira. Mas o problema técnico era, como sempre, o de menos. Somente em 1867 estaria vencida a gincana político/corrupto/burocrática e pronta a ferrovia que até hoje é a que vence a Serra do Mar.

Nesse meio tempo um Pedro II mais maduro nomeia Joaquim Saldanha Marinho, pernambucano que já governara Minas Gerais entre 1865 e 1867 presidente da Província de São Paulo (em 1867 e 1868). Advogado, jornalista, sociólogo, maçon e político, esse grande brasileiro sobre cuja biografia faltam estudos mais aprofundados, aproveitando o momento conturbado do esgotamento financeiro do império pela Guerra do Paraguai (1864 a 1870), concentra-se numa campanha pela extensão da The São Paulo Railway Company Ltd., que seus proprietários ingleses, sem segurança jurídica, recusavam-se a levar além de Jundiaí, para a criação, em moldes estritamente capitalistas como nunca antes tinham sido permitidos no Brasil, do que viria a se tornar a Companhia Paulista de Estradas de Ferro.


Saldanha promovia, nos teatros de São Paulo e Campinas, um centro tradicional de tropeiros que conheciam o Brasil que ainda não tinha estradas, noitadas de apresentação do projeto e venda de ações da futura ferrovia que integraria a Noroeste Paulista à economia brasileira. E ela avança: em 1875 até Rio Claro, 76 até Descalvado, mais umas tantas batalhas burocráticas e vai a Ribeirão…

Os efeitos são explosivos, como se poderá constatar nos livros revolucionários de Jorge Caldeira que, rompendo a patrulha pseudo “marxista” que dominou a historiografia brasileira ao longo de todo o século 20, contam com números, personagens e pormenores fascinantes “Uma História do Brasil com Empreendedores”, a história de “Julio Mesquita e seu Tempo” que é também uma história da economia de São Paulo em seu melhor momento, e a “História da Riqueza no Brasil”, que sintetiza e extende suas obras anteriores.

Esses efeitos perduraram por todo o século 20, moldaram e consolidaram a vocação empreendedora de São Paulo. Assim como a ferroviarização sem peias nem limites, possível num ambiente genuinamente democrático a serviço dos interesses da maioria, fizeram dos Estados Unidos o que são hoje — em 1890 já tinham 129.774 km de ferrovias; hoje chegaram a 226.600 — São Paulo decolou para um destino melhor que o do resto do Brasil.

Conforme avançava a sucessão de falcatruas e golpes da era republicana e aumentava o inchaço do monstro corporativo-corrupto dos “donos do Estado” brasileiro o país foi, de enguiço em enguiço, jogando fora projetos como a ligação da Mantiqueira com o porto de S. Sebastião ainda no século 19 e inúmeros outros no 20, até cair na estatização do que a iniciativa privada tinha feito de ferrovias em 1946 e daí em diante, de brejo em brejo, nos exíguos 29.755 km de trilhos que nos restam hoje, boa parte dos quais desativados, enquanto a China constrói 20 mil km de trens ultra-rápidos a cada quatro anos.

Sobre a falta que isso fez e faz, estão aí os 14 projetos envolvendo 8 mil km já contratados diante do mero anúncio da presente liberação. A ver até onde conseguiremos chegar neste país em que, se fosse vivo, Ruy Barbosa muito provavelmente estaria preso por “anti-republicano” pela polícia política de Alexandre de Moraes — que prova mais conclusiva do que ter Pedro II dito dele, no exílio, que “Nas trevas que caíram sobre o Brasil, a única luz que alumia, no fundo da nave, é o talento de Ruy Barbosa“? — se os pessóis e esseteefes deixarem.
 
BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

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