quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

'Não Olhe para Cima', na Netflix, é mera pregação para convertidos.

 



Dicotomia entre apocalíticos e negacionistas, a coisa mais anticientífica que existe, me fez torcer pelo cometa. João Pereira Coutinho via
FSP:


Houve um tempo em que os filmes satíricos não eram óbvios. Deixemos de lado os nomes sagrados de Hollywood –Ernst Lubitsch, Howard Hawks, Billy Wilder.

Nos anos mais recentes, assistir a "Clube da Luta", de David Fincher, ou ao primeiro "Borat", com Sacha Baron Cohen, era comprovar que o gênero estava vivo.

O diretor Adam McKay não pertence a esse restrito clube. O seu "Vice", paródia do ex-vice-presidente Dick Cheney, só tinha salvação por causa de um ator de gênio, Christian Bale. "Não Olhe para Cima", que agora estreou na Netflix, está uns pontos abaixo de "Vice". O que significa que não tem salvação alguma.

Eis a história: um cometa gigante está em rota de colisão com a Terra. Os cientistas fazem os cálculos e vaticinam: a humanidade tem 6 meses e 14 dias até à aniquilação total. Mas como é possível salvar a espécie humana quando ela persiste em não olhar para os fatos?

Pior, muito pior: a presidente dos Estados Unidos, uma espécie de Donald Trump de saia, despreza o conhecimento científico e opta por embusteiros high-tech, que colocam o lucro fácil acima da sobrevivência humana.

Para que nenhum clichê seja esquecido, a mídia também não ajuda: os temas científicos perdem no ibope para os dramas das celebridades. Será que vale a pena salvar um mundo assim?

É essa a pergunta que formulei durante todo filme, o que me levou a sentir uma simpatia imediata pelo cometa. Até torci por ele: "Vem, meu bem, e destrói tudo."

Não é piada. É um pensamento bem funesto e bem sério, que se aplica às alterações climáticas que o filme pretende evocar.

Existem os fatos: o planeta aquece, a humanidade contribui para esse aquecimento, e a Terra pode virar inabitável no médio prazo. Mas nós, pecadores, não queremos expiar esses pecados. Se assim é, será que merecemos salvação?

Como é evidente, não só merecemos como, pelo menos no Ocidente, fazemos incomparavelmente mais pela sustentabilidade do planeta do que países como a China, a Índia ou a Rússia.

Refiro esses três, especificamente, porque eles são citados no filme como a última esperança da Terra para que o fatal cometa seja destruído. É o único momento de genuíno humor em todo filme. O fato de ser humor involuntário não desqualifica as gargalhadas que eu dei.

Sem falar das outras. Uma sátira, para ser bem-sucedida, implica uma adesão mínima à realidade. Mas onde está a realidade de "Não Olhe para Cima"?

Para começar, a dicotomia primitiva entre "apocalíticos" e "negacionistas" é a coisa mais anticientífica que existe. A discussão científica sobre o clima faz-se com modelos hipotéticos, dos mais extremos aos mais moderados, e não com dogmas infantis de "vamos todos morrer" ou "vamos todos ficar bem".

Além disso, se Adam McKay acredita mesmo que a mídia ou o establishment político não dedica ao assunto a seriedade que ele merece, é legítimo perguntar em que planeta o diretor vive.

Se existe tópico que congrega as atenções da mídia, das instituições internacionais, das ONG’s e dos governos é precisamente as alterações climáticas.

Isso coloca o filme numa situação paradoxal: como é possível apresentar os cientistas do filme como a minoria iluminada quando as preocupações que os animam são, na verdade, as preocupações da maioria que tem voz e poder?

A sátira, por definição, incomoda os poderosos. Mas, excetuando os órfãos de Donald Trump ou os zumbis de Bolsonaro, quem se sente incomodado com a mensagem do filme?

"Não Olhe para cima" é mera pregação aos convertidos. Tivesse Adam McKay optado por um filme sobre os crimes ambientais de Vladimir Putin, Narendra Modi ou Xi Jinping e talvez a sua sátira fosse a denúncia corajosa que o tema merece.
 
BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

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