sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Denúncia de assédio sexual no Metaverso é só o começo

 



Que maravilha: no Metaverso, as pessoas viverão em bolhas e poderão eliminar qualquer desafeto com um simples comando no teclado. Luciano Trigo via Gazeta do Povo:


Nesta altura do campeonato, mesmo gente totalmente desinteressada no assunto já ouviu falar no Metaverso. É a nova grande aposta de Mark Zuckerberg, que anunciou recentemente que o Facebook passará a se chamar “Meta” (pronuncia-se “Méta”, não confundir com o imperativo do verbo “meter”). Trata-se, basicamente, de uma plataforma que almeja “duplicar” a realidade, proporcionando a gente frustrada, fracassada e infeliz uma segunda chance na vida, ainda que no ambiente virtual.

Aliás, a ideia nem é tão nova ou original: o início dos anos 2000 testemunhou a ascensão e rápida queda da plataforma “Second Life”, da qual hoje quase ninguém se lembra. Sobre o Second Life e as razões do seu fracasso, escreverei em outro artigo. Hoje vou comentar uma notícia sobre o Metaverso que li na semana que passou: “Metaverso já tem denúncia por assédio sexual”.

Imediatamente me veio à memória um trecho de um conto de Jorge Luis Borges que classificava como abomináveis os espelhos – como a cópula – por multiplicarem os seres humanos. Seguramente, o escritor argentino sentiria a mesma repulsa pelo conceito do Metaverso: para que duplicar, virtualmente, as misérias e neuroses da vida real? Já não temos problemas bastantes no mundo material, palpável, que nos cerca?

(Parênteses: desnecessário dizer, assédio sexual é algo grave, que deve ser combatido com rigor. Não deixa de ser preocupante, por outro lado, a frequência com que reputações são destruídas no tribunal da mídia e das redes sociais, sem qualquer apuração e sem que o acusado tenha chance de se defender.

Conheço mais de um caso de indivíduos que foram expostos e acusados injustamente. Porque basta que três ou quatro pessoas se unam para afirmar que foram assediadas 10 anos atrás para colar na testa do cidadão – quanto mais famoso, melhor – o carimbo de assediador, ou coisa pior.

Fato: nem sempre a acusação é verdadeira, as pessoas mentem, exageram e distorcem os fatos, muitas vezes de má-fé. Quando não é verdadeira, quem vai reparar os danos causados à imagem do acusado? Ninguém. É muita irresponsabilidade, mas os tribunais da lacração não param.

Agora mesmo, um conceituado obstetra de São Paulo está sendo trucidado na internet porque teria usado “frases desrespeitosas” durante um parto. Denunciado por uma influenciadora nas redes sociais, logo apareceu outra vítima, que fez nova acusação gravíssima: durante o trabalho de parto, o médico teria feito uma brincadeira sem graça com seu marido, dessas que, imagino, devem ser feitas aos milhares por obstetras. Bastou para o caso ganhar novas manchetes escandalosas.

Mas aí você vai ler a matéria e descobre que a brincadeira foi: “[A vítima] diz ter ouvido perfeitamente [o médico] dizer a seu marido, em tom de ‘brother’, que tinha ‘feito um ponto ali, que ele não ficasse preocupado, porque tava tudo bem’.” Aparentemente, isso gerou um trauma horrível na parturiente - nos nossos dias, motivo mais do que suficiente para encerrar a carreira do médico.

Além do risco de prejudicar a vida e a carreira de profissionais competentes e pessoas honestas, quando é estimulado como vem sendo (“Denuncie!” é a palavra de ordem do momento), o denuncismo, na internet e fora dela, se transforma facilmente em ferramenta de vingança de gente ressentida ou mesmo de perseguição por motivação política: o linchamento moral serve para calar tanto desafetos pessoais quanto quem ousa desafiar o pensamento hegemônico de gente “do bem”, das pessoas virtuosas que adoram apontar o dedo, esfolar e destruir. Fecho parênteses.)

Voltando à notícia que li. O episódio aconteceu dentro do “Horizon Worlds”, segundo entendi uma parte do Metaverso na qual avatares digitais interagem socialmente com avatares de outros usuários. Pois bem, uma usuária afirmou que seu avatar foi “apalpado” por um desconhecido no ambiente virtual. A mulher também denunciou os outros usuários que circulavam pela plataforma, testemunharam o “incidente”, mas não prestaram ajuda.

Mas isso é só o começo. Em breve o Metaverso também contará com a sua própria cultura do cancelamento e com manifestações identitárias de avatares de minorias: avatares trans farão passeatas contra a transfobia, e avatares gordos contra a gordofobia. Avatares conservadores serão classificados como negacionistas e defensores do avatarcídio. E todos os avatares terão que tomar pelo menos cinco doses da vacina virtual - e postar foto da carteirinha de vacinação, para mostrar como são virtuosas.

Aliás, após a repercussão do episódio, o vice-presidente do Horizon Worlds explicou que a usuária poderia ter recorrido à “Safety Zone”, um recurso que permite a criação de uma bolha em torno do avatar, que impossibilita que outros usuários interajam com seu personagem. no ambiente virtual. É claro que o mesmo também poderá ser feito por motivação política ou ressentimento pessoal.

Que maravilha: no mundo ideal as pessoas viverão em bolhas e poderão excluir qualquer desafeto com um simples comando no teclado. Isso é apenas uma fantasia paranoica de segurança, reveladora da intolerância e do autoritarismo daqueles que sempre gostam de gritar que defendem a democracia No limite, o mecanismo de cancelamento do Metaverso representa, justamente, o atestado de óbito da democracia e da vida em comunidade, já que uma e outra pressupõem o convívio civilizado com a diferença.

Mas a insanidade não para. Já apareceu um especialista apontando a “necessidade de regular o ambiente virtual” . E uma advogada aproveitou para denunciar a “flagrante desigualdade de gênero” e a “naturalização da violência” no Metaverso.

Ora, é óbvio que qualquer forma de violência, seja ou não baseada em gênero, na vida real como no Metaverso, precisa ser combatida. Mas também parece óbvio que a pandemia de bom-mocismo fake, de vitimização como estratégia de vida, de patrulha moralista, de ostentação de virtude de rede social e de lacração identitária está transformando o mundo em um lugar insuportavelmente chato de se viver.

E o pior é que nem vai adiantar tentar escapar da chatice fugindo para o Metaverso: os chatos já terão chegado lá também.
 
BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

Nenhum comentário:

Postar um comentário