quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

A cultura woke

 



O mundo woke tem o poder de causar dano, afetar a imagem de marcas e pessoas. Por isso a ordem, dita à boca pequena: tomem cuidado. Fernando Schüler para a revista Veja:


William Kelley era um jovem escritor, 24 anos, quando publicou, no início dos anos 60, um ensaio, If you’re woke, you dig it, no The New York Times. O artigo é usualmente visto como ponto de partida do uso da palavra woke no vocabulário político e cultural americano. O artigo de Kelley não tinha um sentido militante. Ele simplesmente viu uma frase escrita no linguajar típico da cultura negra de Nova York, no metrô, e se surpreendeu que ela fosse rotulada como “linguagem beatnik”. Daí seu convite, na verdade bastante amistoso, para que as pessoas ficassem ligadas. E o secreto orgulho: “O negro americano sabe que pode criar a linguagem mais excitante do inglês atual”

O termo woke explodiu com o Black Lives Matter, após o assassinato de Trayvon Martin, em 2012, e Michael Brown, em Ferguson, dois anos depois, e na onda de protestos que se seguiram. “Stay woke” virou hashtag, título de filmes e livros sobre o movimento. Sua ideia central: é preciso estar alerta. Há algo muito errado se passando com a violência policial, com a insensibilidade humana, com velhos preconceitos. Ninguém que preste atenção àquelas imagens da morte de George Floyd discordaria disso.

Há outro caminho que dá conta da ascensão da cultura woke. É uma história um pouco mais longa e nos remete ao período posterior à queda do muro de Berlim, o fim da Guerra Fria e a vitória da globalização econômica. A pregação socialista se tornou um exercício vazio e o velho mundo da luta social organizada em torno dos sindicatos se tornou obsoleto. A economia do conhecimento e a expansão das classes médias colocaram no centro da pauta política o que Francis Fukuyama chamou de “valores pós-materiais”. Gradativamente, saiu de cena o líder sindical, o dirigente social-democrata, com sua agenda pragmática de melhoria econômica, e entrou em cena o ativista de classe média, em geral vinculado ao mundo universitário. A velha retórica da luta de classes saiu de moda e ingressaram no palco os temas de gênero, raça e orientação sexual. E a questão ambiental. Velhos sindicalistas tornam-se peças de museu, enquanto Greta Thunberg mobiliza multidões, cruzando o oceano em um veleiro e passando pitos nos adultos da sala, em infinitas conferências sobre o clima.

Muito já se escreveu sobre isso. Mark Lilla chamou a atenção para a fragmentação que o fenômeno de “identitarização” das lutas sociais vem produzindo sobre o mundo progressista. A velha esquerda se sente incomodada, mas não tem lá muita alternativa. Tempos atrás assisti a um velho militante reclamar que enquanto “todos se preocupam com banheiros trans”, a miséria corre solta e os temas do mundo do trabalho (a menos que mexam com alguma “identidade”) simplesmente não mobilizam mais ninguém.

Interessante é observar a atual mutação na qual as empresas e a publicidade, o mundo da arte e do jornalismo se ajustam rapidamente aos trejeitos do ativismo woke. Sua popularização, diz a jornalista Beth Daley, fez com que uma ideia vital passasse a ser “cinicamente aplicada a qualquer coisa, de refrigerantes a lâminas de barbear”. As empresas criam áreas de ESG (Environmental, Social and Governance), onde cabe qualquer coisa “do bem”; implantam “comitês de diversidade”, para ditar a adequada composição identitária em eventos e contratações; fazem marketing contratando ativistas para vender artigos de luxo, e por aí vai.

Será uma atitude cínica? Não creio. É apenas o mercado. A revista The Economist observou como a ocupação crescente do mercado de trabalho por parte da geração woke, formada na última década ou um pouco mais, vem afetando as empresas. Mas a verdade é que as organizações simplesmente respondem a uma demanda dos consumidores. No Brasil, 79% deles se declaram simpáticos ao “posicionamento político e social” das marcas. E mais: os ativistas são barulhentos e formam grupos de pressão no mundo digital. As empresas têm medo. Assim como muita gente no jornalismo, nas universidades, nas organizações civis. O mundo woke tem o poder de causar dano, afetar a imagem de marcas e pessoas. Os ativistas sabem disso, o mercado também. Por isso a ordem, dita à boca pequena: tomem cuidado.

Há ainda uma dimensão mais ampla desse fenômeno: a cultura woke como parte do ethos contemporâneo. Algo na linha do que li em um dicionário, por estes dias: ser woke é “agir de modo pretensioso, mostrando quanto você se preocupa com algum tema social”. A conotação, nessa nova mutação, é negativa. Lembra o dito melancólico de Umberto Eco, em seus últimos dias: os idiotas da aldeia ganharam, com a internet, ares de “sábios universais”. A tese diz o seguinte: sempre tivemos o hábito de meter a colher na vida dos outros. A diferença é que antes fazíamos isso em reuniões de família ou em um pub, depois de algumas cervejas. Hoje ganhamos poder, só não mudamos a nossa cabeça. Entre uma e outra série da Netflix, pedimos que alguém seja demitido do jornal, que um blogueiro seja preso, atacamos o touro dourado da Bovespa, pregamos um boicote a este ou àquele produto, talvez porque o dono da empresa ande do lado político que eu não gosto.

Dispondo de poder, as pessoas passam a agir como pequenos políticos. É natural que façam isso. A “sinalização de virtude” é apenas uma estratégia de marca pessoal. Na bem-humorada definição do escritor negro Damon Young, você é woke “se recicla seu lixo”, ou se “retuíta alguma coisa sobre as virtudes da reciclagem”. No fundo, é tudo muito barato. Você sequer precisa frequentar o SUS. Apenas escrever “viva o SUS” na sua timeline.

O pulo do gato é separar o joio do trigo. Saber o que são demandas de justiça e o que não passa de raiva e espuma, na guerra política. O que é a luta por direitos e o que não passa de sua caricatura. Só dispomos do bom senso para fazer essa distinção. Lembro de Barack Obama em um debate. O mundo é “complicado e cheio de ambiguidades”. E julgar os outros, no Twitter, pode ser divertido e “fazer você se sentir bem, mas não é algo sobre mudar as coisas de verdade”.

O que talvez precisemos é de um duplo woke. Pessoas antenadas para a injustiça social, mas com um espelho de bom tamanho à frente. Olhos bem abertos para os defeitos do mundo, que não são poucos, e igualmente para seus próprios defeitos. Daí, quem sabe, menos dispostas a meter o dedo na cara dos outros, e mais a dialogar e persuadir, como é próprio das boas democracias.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Publicado em VEJA de 1 de dezembro de 2021, edição nº 2766
 
BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

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