Com o melhor funcionamento do sistema político no conjunto, será possível atenuar o descontentamento e, consequentemente, bloquear o caminho para aventuras redentoras. Fernando Gabeira para o Estadão:
Relatório
divulgado em Estocolmo esta semana indica a democracia brasileira como
uma das que mais decaíram nos últimos cinco anos.
O
relatório é assinado pelo Instituto Internacional para a Democracia e
Assistência Eleitoral (Idea) e considera que a democracia foi afetada
negativamente pela gestão da pandemia, por escândalos de corrupção,
protestos antidemocráticos e ameaças ao Estado de Direito.
Para
quem acompanha o cotidiano nacional, isso não é uma grande surpresa. A
democracia está em acentuado declínio desde a eleição de Bolsonaro, em
2018, e o presidente eleito é o ator mais importante no retrocesso.
Os
Estados Unidos, pela primeira vez, apesar do vigor de sua democracia,
aparecem em ligeiro declínio, graças, sobretudo, à passagem de Donald
Trump pelo poder.
Um
dos fatores que atingiu a democracia americana acabou se expandindo
para o Brasil: o questionamento do sistema eleitoral. Trump recusou-se a
aceitar a derrota, alegando fraudes, enquanto Bolsonaro, no Brasil,
atacava o voto eletrônico.
Não
sei se o relatório chegou até lá, mas a escalada autoritária no Brasil
sofreu um abalo depois do Sete de Setembro. Naquele dia, Bolsonaro
reuniu multidões para atacar o Supremo Tribunal Federal (STF) e havia
dezenas de cartazes pedindo intervenção militar.
Não
há dúvida de que a maior ameaça à democracia no Brasil nasce com
Bolsonaro e seus aliados. O relatório aponta o processo de declínio como
iniciando em 2016, com o impeachment de Dilma. No entanto, a crise que
corroeu o sistema político antes de 2018 e que permitiu a ascensão de
Bolsonaro já expressava um declínio no processo de redemocratização.
Esse declínio pode ser traduzido no desencanto dos eleitores com o
sistema político e sua abertura para aventuras que varressem todos os
seus vestígios.
Nesse
sentido, Bolsonaro é o principal ator do declínio democrático, mas não o
inventou, apenas tirou partido da crise, para aprofundá-la ainda mais.
A
compreensão de que a crise democrática não se resume apenas no seu ator
principal é algo que talvez possa afinar um pouco nossos instrumentos
de análise.
Esta
semana foi marcada pelo fiasco tecnológico nas eleições prévias do
PSDB. O partido teve a boa ideia de importar o sistema de eleições
primárias americanas, mas, ao adaptá-lo às suas circunstâncias, acabou
revelando seu próprio fracasso.
O
PSDB, um dos grandes partidos brasileiros do processo de
redemocratização, já estava em decadência. A crise de confiança causada
pelas denúncias de corrupção o atingiu em cheio.
Nas
eleições de 2018, alguns principais nomes não só abandonaram o
candidato do partido, como embarcaram na campanha de Bolsonaro.
Na
falta de uma visão nacional e na incapacidade de perder de cabeça
erguida, o PSDB acabou precipitando sua perda de identidade. Isso
repercutiu na própria bancada no Parlamento, seduzida por votar com o
governo em troca das vantagens que isso proporciona. De certa maneira, é
possível dizer que o partido foi colhido por um processo de decadência
anterior a Bolsonaro e agravado por ele.
Um
dos argumentos da escalada autoritária era a luta contra um sistema
corrompido. Sem voltar atrás nas suas pretensões antidemocráticas,
Bolsonaro recuperou algumas das práticas que alimentaram sua aventura. O
jogo de toma lá dá cá no Parlamento, do qual o chamado orçamento
secreto é a principal expressão, mostra que Bolsonaro usa de duas armas
simultâneas para atacar o processo democrático. Usa a decadência para
defender suas pretensões autoritárias e, ao mesmo tempo, aprofunda o
fisiologismo para se manter no governo.
As
pesquisas indicam que a decadência da democracia é um fator mais amplo
do que se pensa e acredita-se que apenas a minoria da população mundial
viva sob um Estado Democrático de Direito.
Os
processos que minaram nossa democracia em grande parte foram inspirados
no governo Trump (questionamento das eleições, máquinas de fake news),
mas uma compreensão maior, certamente, virá do fato de que quando
Bolsonaro surgiu em cena já estávamos em condição de grande
vulnerabilidade.
No
ano que vem faremos eleições presidenciais e para o Congresso. Foram as
eleições do período democrático que acabaram enfraquecendo o prestígio
do sistema político. Eram fabulosamente caras e acabaram distanciando os
partidos dos eleitores comuns.
Um
roteiro para reagir ao ritmo declinante pode estar nas próprias
eleições, pelo menos em dois aspectos: na apresentação de programas que
possam superar a crise econômica e social, mas também em ideias que
possam vislumbrar uma nova relação entre governo e Parlamento, sem
idealismos, mas tentando corrigir os grandes erros, os que resultam em
processos como o mensalão ou o orçamento secreto.
Com
o melhor funcionamento do sistema político no conjunto, será possível
atenuar o descontentamento e, consequentemente, bloquear o caminho para
aventuras redentoras. A democracia nunca esteve tão perto de sucumbir
desde o movimento das Diretas Já. O susto vale um esforço de análise e
uma vontade de mudança.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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